Muitas desistem. O filho de um
amigo meu, no entanto, não desistiu. Ele continua insistindo em fazer
perguntas.
Ele tem um “caderno de perguntas
ainda não respondidas por ninguém”. Um caderno que seus pais não conhecem.
Quando descobri o tal caderno,
fiz com o Zeca um trato. Ele queria chamar a isso de pacto. Eu disse que não,
que pacto era coisa muito séria e... Ele nem respirou e tascou:
- Mas
por quê?
Expliquei-lhe que pacto carregava
outros significados.
- Tipo
“pacto com o diabo”?
- Então
você já sabe disso?
- Claro,
tio! Do diabo eu entendo um pouco.
Eu me arrepiei, confesso. O
garoto tinha pouco mais que nove anos na ocasião. E falava com uma
tranquilidade que assustava… Para ele não existia assunto proibido,
cabeludo…
Felizmente estávamos em casa.
Alguns colegas do meu filho caçula vieram participar de um campeonato de
videogame e eu pude conversar com ele sem nenhum outro adulto por perto.
Retomei a conversa:
- Certo!
Se você não teme o “tinhoso”, o “capiroto”, então podemos, sim, fazer um pacto
de silêncio.
- Tio,
o senhor parece que tem medo de falar dessas coisas. Se é tudo ficção, pra quê
ter medo?
- Você
acha mesmo que é ficção?
- Eu
e mais algumas milhões de pessoas.
- Mas
em Deus você acredita, não é mesmo?
Fiz questão de dramatizar um
pouco para saber o que ele pensava a respeito.
- Depende,
tio. O meu Deus pode não ser igual ao seu…
- Ah,
é? Me explica isso, então.
- Você
sabe, tio! Eu sei que você sabe do que estou falando…
- Estou
em dúvida, na verdade. Por isso prefiro que você me fale.
- A
minha concepção de Deus pode ser uma e a sua, outra. Eu fico entre as ideias do
Einstein e a dos cristãos. Depende da situação.
Tremi! Ele sabia argumentar,
filosofar.
- Espera
aí! E como você sabe sobre estas concepções a respeito da divindade?
- Youtube,
tio! Já assisti muitas palestras… Por isso estou entre a ideia de
transcendência e a de imanência. Ah, me lembrei: o outro pensador é o
Spinoza!
- Sim,
e aonde você pensa em chegar?
- Quer
saber mesmo?
- Foi
o que eu perguntei!
- Muita
gente se assusta com minhas respostas!! Mas se o senhor é mesmo corajoso eu vou
te dizer...
Dessa vez, o suspense ficou por
conta dele. Eu tive que esperá-lo ir beber água (ele fez um sinal de que estava
com sede).
Bebeu tranquilamente, me olhando
nos olhos e sorrindo, como que antevendo alguma possível reação minha.
- Tio,
eu penso em ir fundo! Ao abismo, ao fundo do fundo do fundo de tudo o que eu
vier a investigar!! Se precisar, eu até viro o mundo do avesso.
Eu me sentia diante de um titã do
pensamento, de alguém pronto a se aventurar no mar profundo do conhecimento, do
que há ainda a se descobrir! Mas procurei não demonstrar minha admiração.
- O
seu silêncio é feito de espanto ou de encanto, tio?
Ele sabia brincar com as
palavras… Eu recuperei o fôlego:
-
Encantado com o seu propósito, acima de tudo.
Quanto ao espanto, vejo que você sabe bem conjugar o verbo espantar. Espanto
não é o mesmo que susto, suponho.
- Não
mesmo! Está mais para perplexidade, para assombro.
- Alguma
coisa tem te assombrado?
- Além
da maldade humana, pouca coisa. Conhecer as coisas lá de fora, da natureza, é
mais simples. Basta um pouco de esforço e de imaginação. Mas saber o que pode
motivar alguém a ser cruel por prazer, me sobressalta, me apavora, tio.
- Sei
disso. Sou fraco para filmes com vilões muito malvados… Chego a fechar os olhos
em certas cenas.
- E
o senhor está certo. A violência não deveria servir de pasto para as nossas
emoções.
- Zeca,
espere aí! Você fala assim, dessas coisas, com essas palavras com os seus pais,
professores, colegas da escola?
- Tenho
juízo na cachola, tio! Só estou me abrindo com o senhor. Quer que eu seja visto
como um “nerd”, um “gênio”? Não me deixariam em paz!
- E
como você se vê?
- Sou
apenas um argonauta que aprendeu a fechar os ouvidos às sereias…
Apareceu um outro adulto na sala,
naquele momento. Tivemos que interromper nossa conversa.
Poucos dias depois fui promovido,
no serviço, e tive que me mudar de cidade. Felizmente, eu havia anotado o
contato dele.
Hoje, passado dois anos,
continuamos conversando por e-mail. A estratégia dele, de se manter ignorado,
tem dado certo. Convenci-o a treinar “relacionamento humano” em diversos graus.
Ele levou a sério. Disse-me que já havia dado o primeiro beijo (respeitoso, nas
palavras dele) na namorada, menina mais velha que ele uns dois anos.
Com a Pâmela andava lendo alguns
livros - romances, principalmente.
Surpreendi-me com uma de suas
últimas mensagens, há poucos dias:
“Tio, você sabe que não me
preocupo com o futuro. Mas conheci uma cartomante e ela leu, de graça, minha
mão. Deixei, pois ela inspirava confiança, além de ser da família (prima de
terceiro grau da minha mãe). Sabe o que ela me disse?”
Ele, obviamente, não contou… Me
fez perguntar, me interessar… Somente no dia seguinte veio a resposta:
“Tio, sei que o senhor está
inquieto e doido para saber o que a cartomante me disse. Direi, então. Ela
jogou as cartas e, depois de me falar coisas que só eu sei, me pediu para fazer
uma pergunta. Fiz sobre o meu destino. Eis a resposta: “Eu vejo você curando,
principalmente gente de ‘cabeça grande e coração pequeno’. Curando com as
palavras”.
Ele terminou a mensagem me
perguntando se eu sabia do que se tratava. Eu tinha certeza que era uma
pergunta retórica; que ele tinha plena capacidade de matar, sozinho, a charada…
Teria ele medo do que o aguardava? - pensei comigo.
Só me ocorreu aconselhá-lo a ler
“obras literárias abismais”… A começar por Os
miseráveis. Ler em voz alta, junto com a namorada. Ele teria tempo,
depois, para as outras fases da sua jornada.
Em sua última mensagem me disse:
“Tio, sei que sofrer com os personagens é um caminho curto para a aprendizagem.
Agradeço a você por me indicar uma obra tão densa e profunda”.
Estou, neste instante, aguardando
suas próximas mensagens. Ansioso, confesso, principalmente por saber que Jean
Valjean, no romance, estava prestes a encontrar Cosette naquela memorável noite
de Natal, próximo à fonte d'água… Terá ele a mesma impressão que eu tive?
Estará nele despertado o sentimento paternal, tal como o meu foi aguçado, desde
então?