quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O que existe no fundo do fundo do fundo de tudo?


Criança curiosa é bem assim: começa perguntando, perguntando e…

Muitas desistem. O filho de um amigo meu, no entanto, não desistiu. Ele continua insistindo em fazer perguntas. 

Ele tem um “caderno de perguntas ainda não respondidas por ninguém”. Um caderno que seus pais não conhecem. 

Quando descobri o tal caderno, fiz com o Zeca um trato. Ele queria chamar a isso de pacto. Eu disse que não, que pacto era coisa muito séria e... Ele nem respirou e tascou: 

-   Mas por quê?

Expliquei-lhe que pacto carregava outros significados. 

-   Tipo “pacto com o diabo”?

-   Então você já sabe disso? 

-   Claro, tio! Do diabo eu entendo um pouco. 

Eu me arrepiei, confesso. O garoto tinha pouco mais que nove anos na ocasião. E falava com uma tranquilidade que assustava… Para ele não existia assunto proibido, cabeludo… 

Felizmente estávamos em casa. Alguns colegas do meu filho caçula vieram participar de um campeonato de videogame e eu pude conversar com ele sem nenhum outro adulto por perto. 

Retomei a conversa: 

-   Certo! Se você não teme o “tinhoso”, o “capiroto”, então podemos, sim, fazer um pacto de silêncio.

-   Tio, o senhor parece que tem medo de falar dessas coisas. Se é tudo ficção, pra quê ter medo?

-   Você acha mesmo que é ficção?

-   Eu e mais algumas milhões de pessoas.

-   Mas em Deus você acredita, não é mesmo? 

Fiz questão de dramatizar um pouco para saber o que ele pensava a respeito.

-   Depende, tio. O meu Deus pode não ser igual ao seu…

-   Ah, é? Me explica isso, então. 

-   Você sabe, tio! Eu sei que você sabe do que estou falando…

-   Estou em dúvida, na verdade. Por isso prefiro que você me fale.

-   A minha concepção de Deus pode ser uma e a sua, outra. Eu fico entre as ideias do Einstein e a dos cristãos. Depende da situação. 

Tremi! Ele sabia argumentar, filosofar. 

-   Espera aí! E como você sabe sobre estas concepções a respeito da divindade?

-   Youtube, tio! Já assisti muitas palestras… Por isso estou entre a ideia de transcendência e a de imanência. Ah, me lembrei: o outro pensador é o Spinoza! 

-   Sim, e aonde você pensa em chegar?

-   Quer saber mesmo?

-   Foi o que eu perguntei!

-   Muita gente se assusta com minhas respostas!! Mas se o senhor é mesmo corajoso eu vou te dizer...

Dessa vez, o suspense ficou por conta dele. Eu tive que esperá-lo ir beber água (ele fez um sinal de que estava com sede). 

Bebeu tranquilamente, me olhando nos olhos e sorrindo, como que antevendo alguma possível reação minha.

-   Tio, eu penso em ir fundo! Ao abismo, ao fundo do fundo do fundo de tudo o que eu vier a investigar!! Se precisar, eu até viro o mundo do avesso. 

Eu me sentia diante de um titã do pensamento, de alguém pronto a se aventurar no mar profundo do conhecimento, do que há ainda a se descobrir! Mas procurei não demonstrar minha admiração. 

-   O seu silêncio é feito de espanto ou de encanto, tio? 

Ele sabia brincar com as palavras… Eu recuperei o fôlego: 

-   Encantado com o seu propósito, acima de tudo. Quanto ao espanto, vejo que você sabe bem conjugar o verbo espantar. Espanto não é o mesmo que susto, suponho.

-   Não mesmo! Está mais para perplexidade, para assombro. 

-   Alguma coisa tem te assombrado?

-   Além da maldade humana, pouca coisa. Conhecer as coisas lá de fora, da natureza, é mais simples. Basta um pouco de esforço e de imaginação. Mas saber o que pode motivar alguém a ser cruel por prazer, me sobressalta, me apavora, tio.

-   Sei disso. Sou fraco para filmes com vilões muito malvados… Chego a fechar os olhos em certas cenas. 

-   E o senhor está certo. A violência não deveria servir de pasto para as nossas emoções.

-   Zeca, espere aí! Você fala assim, dessas coisas, com essas palavras com os seus pais, professores, colegas da escola? 

-   Tenho juízo na cachola, tio! Só estou me abrindo com o senhor. Quer que eu seja visto como um “nerd”, um “gênio”? Não me deixariam em paz!

-   E como você se vê?

-   Sou apenas um argonauta que aprendeu a fechar os ouvidos às sereias… 

Apareceu um outro adulto na sala, naquele momento. Tivemos que interromper nossa conversa. 

Poucos dias depois fui promovido, no serviço, e tive que me mudar de cidade. Felizmente, eu havia anotado o contato dele. 

Hoje, passado dois anos, continuamos conversando por e-mail. A estratégia dele, de se manter ignorado, tem dado certo. Convenci-o a treinar “relacionamento humano” em diversos graus. Ele levou a sério. Disse-me que já havia dado o primeiro beijo (respeitoso, nas palavras dele) na namorada, menina mais velha que ele uns dois anos.

Com a Pâmela andava lendo alguns livros - romances, principalmente.

Surpreendi-me com uma de suas últimas mensagens, há poucos dias: 

“Tio, você sabe que não me preocupo com o futuro. Mas conheci uma cartomante e ela leu, de graça, minha mão. Deixei, pois ela inspirava confiança, além de ser da família (prima de terceiro grau da minha mãe). Sabe o que ela me disse?”

Ele, obviamente, não contou… Me fez perguntar, me interessar… Somente no dia seguinte veio a resposta: 

“Tio, sei que o senhor está inquieto e doido para saber o que a cartomante me disse. Direi, então. Ela jogou as cartas e, depois de me falar coisas que só eu sei, me pediu para fazer uma pergunta. Fiz sobre o meu destino. Eis a resposta: “Eu vejo você curando, principalmente gente de ‘cabeça grande e coração pequeno’. Curando com as palavras”. 

Ele terminou a mensagem me perguntando se eu sabia do que se tratava. Eu tinha certeza que era uma pergunta retórica; que ele tinha plena capacidade de matar, sozinho, a charada… Teria ele medo do que o aguardava? - pensei comigo. 

Só me ocorreu aconselhá-lo a ler “obras literárias abismais”… A começar por Os miseráveis​. Ler em voz alta, junto com a namorada. Ele teria tempo, depois, para as outras fases da sua jornada.

Em sua última mensagem me disse: “Tio, sei que sofrer com os personagens é um caminho curto para a aprendizagem. Agradeço a você por me indicar uma obra tão densa e profunda”. 

Estou, neste instante, aguardando suas próximas mensagens. Ansioso, confesso, principalmente por saber que Jean Valjean, no romance, estava prestes a encontrar Cosette naquela memorável noite de Natal, próximo à fonte d'água… Terá ele a mesma impressão que eu tive? Estará nele despertado o sentimento paternal, tal como o meu foi aguçado, desde então? 

sábado, 16 de janeiro de 2016

Alinhavar :: Um verbo, uma história...

 - Vou repetir: a-li-nha-var... A-li-nha-var. Anotou? Deixa eu ver!

Eu não quis mostrar e retruquei:

- Já escrevi e estou indo aos Correios passar o telegrama.

- Certo, mas leia antes, toda a frase, em voz alta.

- Passos largos exigem discernimento (ponto) Não é necessário qualquer pressa (ponto) Alinhavar primeiro, como te ensinei (exclamação).

- Está bom. Corra e quando retornar você me explicará o que eu quis dizer ao seu irmão.

- Vou tentar!

Dante, meu tio alfaiate, viveu para os outros. Tornou-se solteiro aos poucos, como ele dizia, a começar pela artrose que deixou meu avô inabilitado para ajudar nas pequenas tarefas de casa, como puxar água do poço.

Dizem que foi nesta ocasião que despontaram suas habilidades de inventor de pequenas soluções.  Por isso, talvez, tenha se tornado o dono do maior número de ferramentas que já vi em toda minha vida. Até uma plaina de marceneiro ele tinha!

Bem, naquele dia voltei correndo dos Correios, sentei-me, respirei fundo (como ele me ensinou) e comecei minha explicação:

- Tio, eu acredito que o Carlito está desaprumado, como o senhor diz. E desassossegado. Na pressa de comprar barato, ele acabará se dando mal!

- Bom! O que mais?

- Comprar no atacado exige sabedoria. Não é somente preço. Tem que saber apreciar a qualidade, o estado da mercadoria e a quantidade mínima que eles impõem.

- Perfeito! Você está se saindo muito bem. Sabe ouvir e raciocinar. Arremate, por favor.

- Bem, então, ele tem que alinhavar primeiro, não é?

- Sim, é o que está escrito no telegrama... Você não conseguiu entender o sentido?

- Não, tio, não consegui.

- Observe, então, o que estou fazendo.

Ele conduzia a agulha e a linha perfurava no tecido, marcando, fazendo pontos, como ele dizia. Pontos numa barra de calça. Eram pontos grandes. Em menos de um minuto terminou as duas barras.

- Viu? O que eu fiz?

- O senhor preparou a barra, com estes pontos, para costurar depois.

- Isso mesmo. Eu alinhavei. Agora eu posso chamar o dono desta calça e pedir que ele experimente para ver se a altura está correta. Posso desmanchar os pontos e ajustar para cima ou para baixo...

- Ah, tio, então o senhor quis dizer ao Carlito que ele não feche logo o negócio, em cada compra, para não se arrepender depois?

- Exatamente. Como comprador de primeira viagem, sem noção de alguns truques, vão empurrar artigos de segunda, terceira categoria; vai acabar comprando gato por lebre.

- Aconteceu isso com o senhor também?

- Não, nunca consegui ir a São Paulo comprar diretamente nos grandes atacadistas, como era meu sonho tempos atrás. Pensei até em ter meu próprio bazar... Mas aprendi a negociar a distância. Sou capaz de dizer o endereço de cada armarinho no Brás, como chegar lá e qual o nome do melhor vendedor.

- É tio, o senhor poderia ganhar o mundo com esta sua inteligência!

- Poderia se eu tivesse aprendido tudo num curto período de tempo... Vocês me acham habilidoso, mas não avaliam em que condições eu aprendi fazer isso ou aquilo. Como eu cuido dos seus avós, sou passarinho preso!

- O senhor voaria muito alto, tio!

- Para compensar vou preparar os sobrinhos que desejarem sair do ninho mais cedo. Por isso você está aqui me ajudando.

- Eu sei tio, eu sei...

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Exercício de escrita espontâneo e inesperado

...um texto...

SUA FAMÍLIA É RESILIENTE?! Ideias coletadas em uma breve leitura...

Na adversidade é que se forja a resiliência (flexibilidade mais resistência; rápido retorno ao equilíbrio e à serenidade após uma crise de qualquer natureza).

A dor é a semente da superação.

Os obstáculos deveriam ser vistos como sustentáculos do esforço contínuo e necessário para se atingir objetivos.

O incômodo que os atletas sentem após os exercícios são pequenas dores que os preparam para a superação de metas e a consolidação das conquistas, que sempre exigem muito esforço.

A existência de um grau mínimo de resiliência já nos provê de forças suficientes para enfrentar parte das adversidades, nos ajudando a resistir e a retornar ao equilíbrio possível.

Quando, porém, ampliamos a resiliência nos candidatamos a mudanças mais profundas em nossa vida. Estamos referindo aos processos consistentes de transformação e desenvolvimento de diversos aspectos da nossa vida emocional, espiritual.

A resiliência também se manifesta em nossa vida familiar, mesmo que não pensemos nisso ou sequer avaliemos o grau ou as situações em que ela se manifesta.

Como não faltam ocorrências dolorosas, eventos traumáticos, ocasiões de desajustes e desequilíbrio estamos, o tempo todo, usando e testando a resiliência familiar.

Todos estamos, a sós ou em grupo, sujeitos a riscos, ameaças, perigos. Estaremos mais ou menos vulneráveis conforme a capacidade de absorvermos as adversidades e seus fatores de risco.

Há riscos de toda natureza. Cíclicos (ocorrem de tempo em tempo); cotidianos (pequenos e simples transtornos, aborrecimentos); traumáticos e imprevistos (ocorrências de violência); crônicos (que são recorrentes e com os quais se convive sem muitos abalos) e outros.

Administrar os riscos é necessário. Ignorá-los pode ser perigoso!

Há também fatores de proteção que podem atenuar ou neutralizar os impactos que os riscos trazem à convivência em família. Entre outros, destacamos:

. Celebrações em família - instantes mais intensos de convivência afetiva.

. Tempo compartilhado nas rotinas e tradições familiares - momentos aguardados e vivenciados com prazer e leveza.

. Comunicação produtiva e desembaraçada - conversa mais fluida e acolhedora.

. Lazer em grupo - diversas combinações de momentos e formas de diversão.

. Vínculos afetivos mais estreitos - a afetividade equilibrada traz segurança.

Padrões de conduta positiva são criados quando a família tem um bom nível de resiliência. Um deles é a habilidade de se resolver os conflitos e a buscar o consenso mesmo em meio aos dilemas e crises.

Há famílias que lidam com as adversidades de modo mais "introvertido" ou "extrovertido", sereno ou explosivo. São traços constitutivos que se construíram e que não devem ser avaliados como positivos ou negativos. São o que são.

O importante é que a presença em graus elevados da resiliência faz com que as circunstâncias adversas sejam superadas, restaurando-se a integridade dos laços afetivos e o clima de alegria e bem-estar.

É possível aumentar o grau de resiliência familiar. Os caminhos e meios são diversos, mas alguns pontos merecem reflexão:

. Crenças

- Qual o significado que damos ao que ocorre cotidianamente em família?

- Quais são os valores que cultivamos juntos? Estão mais focados no SER ou no TER? No próprio prazer, individual ou na busca de se conviver a despeito das dificuldades a transpor?

- Temos cultivado a espiritualidade, a religiosidade, a transcendência?

- Temos dado atenção às tradições familiares, ao cultivo da memória, o culto aos ancestrais?

- Temos conseguido compartilhar sentidos, percepções, sentimentos, significados?

. Padrões de convivência e organização

- Temos conseguido negociar os papéis no jogo da convivência diária, como pais, cônjuges, filhos?

- Temos respeitado o poder, a autoridade daqueles que a tem, seja por função ou mérito?

- Como andam os laços de proteção e segurança que temos construído juntos? Frouxos, apertados, resistentes?

- Os nossos níveis de coerência entre o pensamos e como agimos estão adequados?

- Temos conseguido cooperar com os cuidados que a casa, o quintal, o jardim exigem?

- Como anda a avaliação dos compromissos e objetivos que temos traçado juntos?

. Modos de resolução de problemas em família

- Somos flexíveis à mudança?

- Temos entendido as crises e adversidades como desafios a serem verdadeiramente compartilhados (ou tenho feito o papel do indiferente, do soluciona-tudo-sozinho, do acusador?)

- Estamos conseguindo nos manter coesos, firmes e nos apoiando um ao outro?

- Temos aprendido a valorizar e a ampliar as conquistas já consolidadas? (o que temos feito de especial, além da rotina?)

- Temos aumentado a nossa capacidade de aprendizado coletivo? (temos lido, discutido temas úteis e produtivos, ouvido boas músicas, assistido bons filmes, passeado por lugares interessantes?)

Sonia Rocío De la Portilla Maya, psiquiatra colombiana que inspirou todo este artigo, afirma existir dois tipos de recursos que ampliam a resiliência em família, o afetivo e o social.

Os recursos afetivos dizem respeito a quatro sentimentos e/ou atitudes que merecem atenção: autocontrole; tristeza; tédio e recuperação do equilíbrio.

O autocontrole tem a ver com a nossa capacidade de lidar com situações de estresse. Para adquiri-la é necessário trabalhar os impulsos, principalmente os da violência (infligida aos outros ou a si mesmo).

A tristeza exige manejo, cuidado. Temos que aprender a lidar com suas ocorrências. Negá-la, mascará-la ou buscar suprimi-la por meio de medicamentos implica em maiores riscos, mais tarde. Esta emoção básica deve ser sentida, vivenciada e superada sem drama ou trauma, por serem desnecessários.

O tédio, este sentimento assustador e tal nosso de cada dia, também exige experiência com a sua lida. Ele está associado a como vivenciamos o tempo. Svendsen nos diz que o tempo para quem experimenta o tédio "em vez de ser um horizonte para oportunidades, é algo que precisa ser consumido". O entediado não sabe o que fazer com o tempo livre, com o tempo do ócio (que deveria ser usado para o aprendizagem prazeroso, para a criatividade, conforme proposta de Domenico De Masi).

Por fim, a recuperação do equilíbrio é uma das formas de se experimentar a resiliência. Após a batalha pela resistência e a luta para ser preservar dos abalos, temos o processo de retomado do momento anterior, do equilíbrio, que nunca será o mesmo (estaremos mais maduros, é certo), mas é o momento da tranquilidade, da segurança.

Os recursos sociais lidam basicamente com a nossa capacidade de mobilizar apoio nas redes de relacionamento em que estamos inseridos.

Pais, educadores e profissionais da saúde mental têm, portanto, muitas tarefas a cumprir juntos, em face da necessidade que se tem de se fortalecer a resiliência familiar.

As políticas públicas, em quaisquer níveis, estão longe de prover as condições para que as famílias atinjam níveis mais elevados de resiliência. O que há, de modo geral, são projetos e programas esporádicos que atendem, por razões emergenciais, determinadas demandas sociais...

Cabe a adesão de mais instituições e pessoas neste esforço, que deve ser coletivo.

Para finalizar, e atento ao texto original do qual se originou este estudo e reflexões (Risco suicida e sua prevenção a partir da família) transcreveremos as palavras da Dra. Sonia Maya:

. A família é a rede mais importante na prevenção do risco suicida (e de outros eventos críticos, acrescentamos);

. É fundamental promover, junto às famílias, a sensação de união e apoio, a expressão das emoções e a manutenção de um ambiente cordial, no qual os conflitos diminuam ou sejam superados.

...outro texto...

A resiliência é uma força que se opõe e nos resguarda das devastações emocionais e físicas que as vivências críticas nos trazem.

Alguma coisa ruim pode nos acontecer? Se acontecer, os resultados serão danosos?

Se você está às voltas com algum tipo de situação adversa em que há risco de sofrer choques, perturbações, abalos a sua RESILIÊNCIA será posta à prova.

A capacidade de conter a trepidação, a oscilação, a comoção e sair da situação adversa com um grau pequeno ou praticamente nulo de repercussão negativa indicará o nível de resiliência alcançado. Quanto menor o trauma, maior a resiliência.


Em suma, a cada vez que enfrentamos uma adversidade e saímos fortalecidos, maior se torna a nossa resiliência. Quanto maior a nossa resiliência mais capacidade temos para superarmos traumas e aprender com eles.

Fonte de inspiração: http://bit.ly/riscosuicidaefamilia

segunda-feira, 30 de março de 2015

Filho de quê?!

- É duro na queda, meio bruto. Ele não nega a raça, nem o berço. É filho do maior beque que o time da nossa cidade já teve. Como diz um compadre meu, um mineiro apaixonado por futebol, fi di béqui é fi di béqui... Estes meninos parecem que já nascem com trava no solado do pé!

Eu custei a entender o sentido daquela conversa... Eu era estagiário de Administração, lá em Sertãozinho, e quem fazia este comentário era uma lenda vida, uma autoridade na fábrica. Sabia tudo das coisas práticas, além de ter a sabedoria dos simples e uma boa conversa. Seu Estevão!

E para destrinchar o rolo que virou, para mim, aquela conversa? Escute só!

Os interlocutores do seu Estevão, amantes da bola, pegaram firme no atalho aberto por ele.

Seguiram falando dos jogadores de defesa, heroicos, de todas as épocas. Comecei até a anotar alguns nomes: Pinheiro, do Fluminense; Luis Pereira, do Palmeiras; Mauro Galvão, do Vasco. Até os estrangeiros foram citados: Gamarra, do Paraguai e Darío Pereyra, do São Paulo.

- Seu Estevão, o senhor estava falando era do beque central, aquele jogador da defesa?

- Sim, meu filho. Você gosta de bater bola?

- Até gosto, mas sou perna-de-pau! Só jogo no gol.

- Então, vai entrar pro nosso time. Aqui a gente aproveita todo mundo!

- Eu só não entendo é a diferença do beque central para o quarto-zagueiro. O senhor sabe?

- Ô, meu filho, fui treinador muito tempo. Categoria de base. O beque central é quem dá o primeiro combate. É um jogador de pegada, tem que ser firme, mas sem dar botinada! Já o quarto-zagueiro é o que fica mais atrás, para o segundo combate, para o rebote. Tem que ser mais técnico.

- Saber matar no peito?!

Riram de mim. Olharam uns para os outros e perceberam que eu era do tipo goleiro-espectador ocasional...

- Matar no peito, tocar de primeira, cabecear de olhos abertos e dar chutão, quando necessário!

- Seu Estevão, eu perdi o começo desta conversa. Sobre o que vocês conversavam mesmo?!

- Ah, sim, era sobre o novo supervisor. É um moço boa praça, que começou trabalhar esta semana. É formado! Ele fez uma preleção...

- Preleção?!

- Ah, desculpa, quem faz preleção é técnico em dia de jogo! Ele fez uma pequena palestra e nos motivou a agir como ele, como um filho de beque!

- Como assim?!

- Ora, o pai dele jogou no meu time e foi o melhor beque central desta cidade. Chegou a ser contratado pelo Botafogo, de Ribeirão Preto, no tempo do Sócrates. Mas estourou o menisco e aí adeus carreira!

- Puxa vida! Sim, mas o que faz um "filho de beque"?

- Imita o pai, ora! Jogo para o time, dá o primeiro combate! Corre atrás!

- Entendi...

Por respeito a tudo o que representava o seu Estevão calei-me e fui conversar com o supervisor, que eu não conhecia ainda (havia pegado uma dengue e fiquei afastado).

- Senhor, posso entrar?

- Nada de senhor aqui! Pode me chamar de Ricardo. Você é o nosso estagiário no Departamento de Material, não é?

- Sim, prazer, Ricardo. Gostaria de ter uma conversa em particular com você.

- Pode ser aqui?

- Acho melhor não!

Fomos para uma sala de reuniões e ele demonstrou preocupação.

- Fica tranquilo, pois não é nada sério, acho...

- Pode falar abertamente, é a política da empresa, você sabe!

- Sei, sim. Vou direto ao assunto.

Narrei, em detalhes, a conversa tida no refeitório, sobre o futebol e a pequena palestra dele...

Ele riu de quase perder o fôlego. O chefe de seu departamento não se aguentou e veio saber da novidade. Esborrachou-se também de rir! Mas o alertou:

- Agora, Ricardo, pode esquecer o seu inglês de vez!! Nada de feedback por aqui... Nunca mais!

- Pode deixar. Vamos ter que aproveitar esta situação e “virar o jogo”!

Resultado: a conversa sobre o filho de beque correu a fábrica e chegou ao ouvido dos donos.

Seu Estevão ganhou aumento para treinar o time dos filhos dos funcionários, antes do horário de expediente.

As equipes, com estas e outras novidades que surgiram, aumentaram a produtividade, graças ao reforço do futebol.

Inglês só ficou permitido durante as aulas e nas preleções do seu Estevão, que passou a ser chamado de “professor”.

Ele colocou os meninos para pesquisar sobre a origem do futebol e exigia que o jogo fosse bilíngue.

O escanteio reencontrou o corner e o pênalti reconquistou grafia e entonação britânica: penalty

- Vá que algum desses meus meninos acabe na Europa. Vai saber falar inglês, sim!



domingo, 29 de março de 2015

O lado sombra

A professora do meu filho dizia que toda criança, mesmo as menores, era capaz de entender "muito além do que a gente pode imaginar".Que nós, os pais, déssemos apoio em casa, sem "quebrar a onda" delas. 

Era assim em sala de aula, naquela escola. Toda conversa, mesmo as mais atravessadas, seriam sempre aproveitadas...

"Então tá, né!".Ouvi esta frase irônica de alguns pais, na saída da reunião.

Meses depois me pus a apreciar o "método de livre associação" da professora, que começava a fazer efeito:

- Luz, cama, ação!!

- Epa! Não é câmera, Stênio?

- Não, a cama nesta frase foi ideia minha. A professora pediu que a gente inventasse uma frase. Podia ser parecida com outra. Inventei!

- Parece que estas três coisas não combinam...

- É do meu filme, mãe!

- Mas não era uma frase?

- Era, mas virou filme. Filme de ação.

- Ahn?! Com cama e tudo?

- Mãe, os verbos de ação que eu escolhi, na aula, foram: sonhar, dormir e imaginar.

- Mas desde quando dormir é verbo de ação?

- Claro que é! Foi a senhora mesmo quem disse isso.

- Eu? Quando?

- A senhora comentou que nem dormindo eu sossego!

- Era só um modo de dizer, uma expressão.

- Meus sonhos são de ação mesmo. Também de suspense, de aventura, às vezes de terror... Tem também um pouco de comédia.

- Então todo o enredo do seu filme acontece no mundo dos sonhos?

- Não, mãe, não é tão simples assim! A cama é apenas um portal.

- Você deita, apaga a luz, atravessa o portal e entra em ação?!

- Nada disso! Seria muito previsível. Na verdade, a cama é onde os personagens da mitologia grega desembarcarão para a aventura.

- É cada ideia!!

- Mãe, a senhora não está ajudando! Vou precisar de vocês. Tenho que conseguir uma cabeça de touro, com chifres bem grandes, para o meu filme. O primeiro personagem que aparecerá será o Minotauro. Tem que ser realista e gravado em casa. O pai...

- Seu pai?! Pode ir sonhando. Machista como ele é, não faria um papel desses de maneira alguma!

- Não?!

- Não!

- Mas o Minotauro...

- Tem chifres.

- E o que tem o chifre?

- É um símbolo que assombra muitos homens.

- Ah, mãe, você não quer dizer que o pai tem medo de ser traído, tem?

- Então você entende?

- Você nunca se apaixonaria por outro homem, mãe, eu sei!

- Nem pensar!! Um só basta, dá trabalho. E, além disso...

- Você gosta mesmo do meu pai, não é, mãe?! Ele não tem feito por onde merecer, mas você faz a sua parte. Eu sei!

- Hein?! Que história é essa, filho? Este assunto...

- Este assunto também me interessa! Vocês são meus pais, lembra? E eu posso ajudar, como tenho tentado. Ontem mesmo conversei com o pai...

- O quê?! Conversou o quê?!

- Sobre as três grandes paixões dos homens.

- Que conversa foi essa?

- Ouvi na escola... Os homens costumam gostar muito de três coisas: amigos, futebol e cerveja.

- Ahn?! Foi a sua professora quem disse isso?!

- Não, mãe, foi um homem, um escritor que visitou nossa turma. Acho que isso acabou saindo, meio sem querer...

- Ah, sim! O livro dele então era sobre outro assunto.

- Era sobre as nossas escolhas, sobre o destino. Acabamos falando de moda e das pessoas que seguem as ideias de outras pessoas sem perceber!

- Meu Deus, preciso voltar para a escola! Me conta mais...

- Ele disse que parte dos homens adora cumprir ordens. Eles não pensam, não tem autonomia... Tipo os soldados na guerra. Por isso, eles conseguem matar tantas pessoas. Mas depois piram o cabeção. E aí matam mais gente e se matam. Não nascemos para certas coisas terminadas em “ança”, mãe, o escritor disse!

- Que coisas são essas?

- Matança, lambança e vingança...

- Rimou, mas é esquisito... Sim, mas e a conversa com o seu pai, o que você disse?

- Eu falei que ele parecia o personagem de uma história que criamos em sala, ao vivo, na visita do autor do livro. Nós escolhemos três palavras no dicionário, ao acaso. E ele provou que nós éramos bons contadores de histórias.

- Me arrepio só de pensar nas palavras que saíram...

- Foi uma fácil, uma mais ou menos e uma difícil. Ovelha, propício e mequetrefe.

- E o seu pai?!

- Mãe, mequetrefe é o mesmo que enxerido, inútil, patife. E tem muita gente assim que comanda pessoas, que influencia, sabe?!

- Não sei de mais nada!! Eu já disse que vou voltar para a escola e juro que vou! Continua.

- Brincamos, no final, de trava-língua e de fazer rima. Alguém lembrou que mequetrefe rimava com chefe. Lembramos também de uma brincadeira que a professora tinha feito em sala: “Cuidado com as ordens do chefe!”.

- Esta professora...

- Ensina a gente a pensar, só isso, mãe!

- Continua que eu estou curiosa!!

- Mãe, o pai se deixa levar por pessoas do tipo “mequetrefe”, inclusive aquele que é o seu “chefe”, um cara totalmente sem noção! Qualquer criança com um pouco de juízo na cabeça sabe fazer escolhas mais sensatas...

- Escolhas mais sensatas! Meu filho, sua professora está roubando a sua infância. Você está se tornando adulto muito cedo, não acha?

- Não acho, não! E para a senhora ficar tranquila, a gente mais brinca em sala de aula, do que estuda, principalmente aquelas coisas chatas dos livros, sabe?

- Verdade?

- Juro por tudo o que é sagrado pra mim e pra você!

- Como assim?! O seu sagrado agora é diferente do meu?

 - Mãe, eu gosto de outras coisas também! Até do Hades eu sou fã. O inferno mitológico dos antigos era maneiro, mãe! Olha aqui a minha camiseta: Darth Wader. Todos nós temos um lado sombra... Ignorar isso pode barrar a luz que trazemos dentro de nós.

- Não vai dizer que a professora...

- Não foi ela! A escolha foi minha. Foi na Semana do Cinema. A senhora não lembra que foram seis dias, até no sábado? Eu escolhi Star Wars. Debatemos muito! Foi a psicóloga da escola que falou sobre nossa sombra. Ganhei até uma figurinha do ídolo dela, o Jung (escreve com jota, mas se pronuncia como i). J - u - n - g.

- Bem e o seu pai, o que disse?

- Vai mudar de emprego e de amigos.

- Eu bem que achei ele meio esquisito, falando umas coisas sem sentido...

- Ah, mãe, ganhei a aposta que fiz com ele. Ele não acertou nenhuma daquelas três palavras (amigo, futebol e cerveja). Eu sabia que o lado sombra dele ia ser mais forte, eu sabia!

- Filho!!

- Mãe, desculpe, mas tenho que colocar em prática o que estou aprendendo na escola! Não é assim que tem que ser?

- Que palavras você achou que ele iria dizer?

- Errei uma só. Ele se superou, mãe! Disse que o que mais importava era Deus, a esposa (“sua mãe”, ele falou!) e a família. Eu achava que ia ser Deus, a esposa e os filhos...

- Queria estar lá para ver a cara de espanto dele...

- De espanto ou de choro?

- Ele chorou?

- Homens não choram, mãe! São os ciscos...

- Sim, são os ciscos...