
Eu
custei a entender o sentido daquela conversa... Eu era estagiário de
Administração, lá em Sertãozinho, e quem fazia este comentário era uma lenda
vida, uma autoridade na fábrica. Sabia tudo das coisas práticas, além de ter a sabedoria
dos simples e uma boa conversa. Seu Estevão!
E
para destrinchar o rolo que virou, para mim, aquela conversa? Escute só!
Os
interlocutores do seu Estevão, amantes da bola, pegaram firme no atalho aberto
por ele.
Seguiram
falando dos jogadores de defesa, heroicos, de todas as épocas. Comecei até a
anotar alguns nomes: Pinheiro, do Fluminense; Luis Pereira, do Palmeiras; Mauro
Galvão, do Vasco. Até os estrangeiros foram citados: Gamarra, do Paraguai e
Darío Pereyra, do São Paulo.
-
Seu Estevão, o senhor estava falando era do beque central, aquele jogador da
defesa?
-
Sim, meu filho. Você gosta de bater bola?
-
Até gosto, mas sou perna-de-pau! Só jogo no gol.
-
Então, vai entrar pro nosso time. Aqui a gente aproveita todo mundo!
-
Eu só não entendo é a diferença do beque central para o quarto-zagueiro. O
senhor sabe?
-
Ô, meu filho, fui treinador muito tempo. Categoria de base. O beque central é
quem dá o primeiro combate. É um jogador de pegada, tem que ser firme, mas sem
dar botinada! Já o quarto-zagueiro é o que fica mais atrás, para o segundo
combate, para o rebote. Tem que ser mais técnico.
-
Saber matar no peito?!
Riram
de mim. Olharam uns para os outros e perceberam que eu era do tipo
goleiro-espectador ocasional...
-
Matar no peito, tocar de primeira, cabecear de olhos abertos e dar chutão,
quando necessário!
-
Seu Estevão, eu perdi o começo desta conversa. Sobre o que vocês conversavam
mesmo?!
-
Ah, sim, era sobre o novo supervisor. É um moço boa praça, que começou
trabalhar esta semana. É formado! Ele fez uma preleção...
-
Preleção?!
-
Ah, desculpa, quem faz preleção é técnico em dia de jogo! Ele fez uma pequena
palestra e nos motivou a agir como ele, como um filho de beque!
-
Como assim?!
-
Ora, o pai dele jogou no meu time e foi o melhor beque central desta cidade.
Chegou a ser contratado pelo Botafogo, de Ribeirão Preto, no tempo do Sócrates.
Mas estourou o menisco e aí adeus carreira!
-
Puxa vida! Sim, mas o que faz um "filho de beque"?
-
Imita o pai, ora! Jogo para o time, dá o primeiro combate! Corre atrás!
-
Entendi...
Por
respeito a tudo o que representava o seu Estevão calei-me e fui conversar com o
supervisor, que eu não conhecia ainda (havia pegado uma dengue e fiquei
afastado).
-
Senhor, posso entrar?
-
Nada de senhor aqui! Pode me chamar de Ricardo. Você é o nosso estagiário no
Departamento de Material, não é?
-
Sim, prazer, Ricardo. Gostaria de ter uma conversa em particular com você.
-
Pode ser aqui?
-
Acho melhor não!
Fomos
para uma sala de reuniões e ele demonstrou preocupação.
-
Fica tranquilo, pois não é nada sério, acho...
-
Pode falar abertamente, é a política da empresa, você sabe!
-
Sei, sim. Vou direto ao assunto.
Narrei,
em detalhes, a conversa tida no refeitório, sobre o futebol e a pequena
palestra dele...
Ele
riu de quase perder o fôlego. O chefe de seu departamento não se aguentou e
veio saber da novidade. Esborrachou-se também de rir! Mas o alertou:
-
Agora, Ricardo, pode esquecer o seu inglês de vez!! Nada de feedback por aqui... Nunca mais!
-
Pode deixar. Vamos ter que aproveitar esta situação e “virar o jogo”!
Resultado:
a conversa sobre o filho de beque
correu a fábrica e chegou ao ouvido dos donos.
Seu
Estevão ganhou aumento para treinar o time dos filhos dos funcionários, antes
do horário de expediente.
As
equipes, com estas e outras novidades que surgiram, aumentaram a produtividade,
graças ao reforço do futebol.
Inglês
só ficou permitido durante as aulas e nas preleções do seu Estevão, que passou
a ser chamado de “professor”.
Ele
colocou os meninos para pesquisar sobre a origem do futebol e exigia que o jogo
fosse bilíngue.
O
escanteio reencontrou o corner e o
pênalti reconquistou grafia e entonação britânica: penalty.
-
Vá que algum desses meus meninos acabe na Europa. Vai saber falar inglês, sim!