quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

O que existe no fundo do fundo do fundo de tudo?


Criança curiosa é bem assim: começa perguntando, perguntando e…

Muitas desistem. O filho de um amigo meu, no entanto, não desistiu. Ele continua insistindo em fazer perguntas. 

Ele tem um “caderno de perguntas ainda não respondidas por ninguém”. Um caderno que seus pais não conhecem. 

Quando descobri o tal caderno, fiz com o Zeca um trato. Ele queria chamar a isso de pacto. Eu disse que não, que pacto era coisa muito séria e... Ele nem respirou e tascou: 

-   Mas por quê?

Expliquei-lhe que pacto carregava outros significados. 

-   Tipo “pacto com o diabo”?

-   Então você já sabe disso? 

-   Claro, tio! Do diabo eu entendo um pouco. 

Eu me arrepiei, confesso. O garoto tinha pouco mais que nove anos na ocasião. E falava com uma tranquilidade que assustava… Para ele não existia assunto proibido, cabeludo… 

Felizmente estávamos em casa. Alguns colegas do meu filho caçula vieram participar de um campeonato de videogame e eu pude conversar com ele sem nenhum outro adulto por perto. 

Retomei a conversa: 

-   Certo! Se você não teme o “tinhoso”, o “capiroto”, então podemos, sim, fazer um pacto de silêncio.

-   Tio, o senhor parece que tem medo de falar dessas coisas. Se é tudo ficção, pra quê ter medo?

-   Você acha mesmo que é ficção?

-   Eu e mais algumas milhões de pessoas.

-   Mas em Deus você acredita, não é mesmo? 

Fiz questão de dramatizar um pouco para saber o que ele pensava a respeito.

-   Depende, tio. O meu Deus pode não ser igual ao seu…

-   Ah, é? Me explica isso, então. 

-   Você sabe, tio! Eu sei que você sabe do que estou falando…

-   Estou em dúvida, na verdade. Por isso prefiro que você me fale.

-   A minha concepção de Deus pode ser uma e a sua, outra. Eu fico entre as ideias do Einstein e a dos cristãos. Depende da situação. 

Tremi! Ele sabia argumentar, filosofar. 

-   Espera aí! E como você sabe sobre estas concepções a respeito da divindade?

-   Youtube, tio! Já assisti muitas palestras… Por isso estou entre a ideia de transcendência e a de imanência. Ah, me lembrei: o outro pensador é o Spinoza! 

-   Sim, e aonde você pensa em chegar?

-   Quer saber mesmo?

-   Foi o que eu perguntei!

-   Muita gente se assusta com minhas respostas!! Mas se o senhor é mesmo corajoso eu vou te dizer...

Dessa vez, o suspense ficou por conta dele. Eu tive que esperá-lo ir beber água (ele fez um sinal de que estava com sede). 

Bebeu tranquilamente, me olhando nos olhos e sorrindo, como que antevendo alguma possível reação minha.

-   Tio, eu penso em ir fundo! Ao abismo, ao fundo do fundo do fundo de tudo o que eu vier a investigar!! Se precisar, eu até viro o mundo do avesso. 

Eu me sentia diante de um titã do pensamento, de alguém pronto a se aventurar no mar profundo do conhecimento, do que há ainda a se descobrir! Mas procurei não demonstrar minha admiração. 

-   O seu silêncio é feito de espanto ou de encanto, tio? 

Ele sabia brincar com as palavras… Eu recuperei o fôlego: 

-   Encantado com o seu propósito, acima de tudo. Quanto ao espanto, vejo que você sabe bem conjugar o verbo espantar. Espanto não é o mesmo que susto, suponho.

-   Não mesmo! Está mais para perplexidade, para assombro. 

-   Alguma coisa tem te assombrado?

-   Além da maldade humana, pouca coisa. Conhecer as coisas lá de fora, da natureza, é mais simples. Basta um pouco de esforço e de imaginação. Mas saber o que pode motivar alguém a ser cruel por prazer, me sobressalta, me apavora, tio.

-   Sei disso. Sou fraco para filmes com vilões muito malvados… Chego a fechar os olhos em certas cenas. 

-   E o senhor está certo. A violência não deveria servir de pasto para as nossas emoções.

-   Zeca, espere aí! Você fala assim, dessas coisas, com essas palavras com os seus pais, professores, colegas da escola? 

-   Tenho juízo na cachola, tio! Só estou me abrindo com o senhor. Quer que eu seja visto como um “nerd”, um “gênio”? Não me deixariam em paz!

-   E como você se vê?

-   Sou apenas um argonauta que aprendeu a fechar os ouvidos às sereias… 

Apareceu um outro adulto na sala, naquele momento. Tivemos que interromper nossa conversa. 

Poucos dias depois fui promovido, no serviço, e tive que me mudar de cidade. Felizmente, eu havia anotado o contato dele. 

Hoje, passado dois anos, continuamos conversando por e-mail. A estratégia dele, de se manter ignorado, tem dado certo. Convenci-o a treinar “relacionamento humano” em diversos graus. Ele levou a sério. Disse-me que já havia dado o primeiro beijo (respeitoso, nas palavras dele) na namorada, menina mais velha que ele uns dois anos.

Com a Pâmela andava lendo alguns livros - romances, principalmente.

Surpreendi-me com uma de suas últimas mensagens, há poucos dias: 

“Tio, você sabe que não me preocupo com o futuro. Mas conheci uma cartomante e ela leu, de graça, minha mão. Deixei, pois ela inspirava confiança, além de ser da família (prima de terceiro grau da minha mãe). Sabe o que ela me disse?”

Ele, obviamente, não contou… Me fez perguntar, me interessar… Somente no dia seguinte veio a resposta: 

“Tio, sei que o senhor está inquieto e doido para saber o que a cartomante me disse. Direi, então. Ela jogou as cartas e, depois de me falar coisas que só eu sei, me pediu para fazer uma pergunta. Fiz sobre o meu destino. Eis a resposta: “Eu vejo você curando, principalmente gente de ‘cabeça grande e coração pequeno’. Curando com as palavras”. 

Ele terminou a mensagem me perguntando se eu sabia do que se tratava. Eu tinha certeza que era uma pergunta retórica; que ele tinha plena capacidade de matar, sozinho, a charada… Teria ele medo do que o aguardava? - pensei comigo. 

Só me ocorreu aconselhá-lo a ler “obras literárias abismais”… A começar por Os miseráveis​. Ler em voz alta, junto com a namorada. Ele teria tempo, depois, para as outras fases da sua jornada.

Em sua última mensagem me disse: “Tio, sei que sofrer com os personagens é um caminho curto para a aprendizagem. Agradeço a você por me indicar uma obra tão densa e profunda”. 

Estou, neste instante, aguardando suas próximas mensagens. Ansioso, confesso, principalmente por saber que Jean Valjean, no romance, estava prestes a encontrar Cosette naquela memorável noite de Natal, próximo à fonte d'água… Terá ele a mesma impressão que eu tive? Estará nele despertado o sentimento paternal, tal como o meu foi aguçado, desde então?