06/04/2009
Outra leitura para a crise
de José Saramago
A mentalidade antiga formou-se numa grande superfície que se chamava catedral; agora forma-se noutra grande superfície que se chama centro comercial. O centro comercial não é apenas a nova igreja, a nova catedral, é também a nova universidade. O centro comercial ocupa um espaço importante na formação da mentalidade humana. Acabou-se a praça, o jardim ou a rua como espaço público e de intercâmbio. O centro comercial é o único espaço seguro e o que cria a nova mentalidade. Uma nova mentalidade temerosa de ser excluída, temerosa da expulsão do paraíso do consumo e por extensão da catedral das compras.
E agora, que temos? A crise.
Será que vamos voltar à praça ou à universidade? À filosofia?
Fonte: http://caderno.josesaramago.org
Religião do consumo
Frei Betto
O "Financial Times", de Londres, noticiou que a Young & Rubicam, uma das maiores agências de publicidade do mundo, divulgou a lista das dez grifes mais reconhecidas por 45.444 jovens e adultos de 19 países. São elas: Coca-Cola (35 milhões de unidades vendidas a cada hora), Disney, Nike, BMW, Porsche, Mercedes-Benz, Adidas, Rolls-Royce, Calvin Klein e Rolex.
"As marcas constituem a nova religião. As pessoas se voltam a elas em busca de sentido", declarou um diretor da Young & Rubicam. Disse ainda que essas grifes "possuem paixão e dinamismo necessários para transformar o mundo e converter as pessoas em sua maneira de
pensar".
A Fitch, consultoria londrina de design, no ano passado realçou o caráter "divino" dessas marcas famosas, assinalando que, aos domingos, as pessoas preferem o shopping à missa ou ao culto. Em favor de sua tese, a empresa evocou dois exemplos: desde 1991, cerca de 12 mil pessoas celebraram núpcias nos parques da DisneyWorld, e estão virando moda os féretros marca Halley, nos quais são enterrados os motoqueiros fissurados em produtos Halley-Davidson.
A tese não carece de lógica. Marx já havia denunciado o fetiche da mercadoria. Ainda engatinhando, a Revolução Industrial descobriu que as pessoas não querem apenas o necessário. Se dispõem de poder aquisitivo, adoram ostentar o supérfluo. A publicidade veio ajudar o supérfluo a impor-se como necessário.
A mercadoria, intermediária na relação entre seres humanos (pessoamercadoria-pessoa), passou a ocupar os pólos (mercadoria-pessoamercadoria). Se chego à casa de um amigo de ônibus, meu valor é inferior ao de quem chega de BMW. Isso vale para a camisa que visto ou o relógio que trago no pulso. Não sou eu, pessoa humana, que faço uso do objeto. É o produto, revestido de fetiche, que me imprime valor, aumentando a minha cotação no mercado das relações sociais. O que faria um Descartes neoliberal proclamar: "Consumo, logo existo". Fora do mercado não há salvação, alertam os novos sacerdotes da idolatria consumista.
Essa apropriação religiosa do mercado é evidente nos shoppingcenters, tão bem criticados por José Saramago em A Caverna. Quase todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. São os templos do deus mercado. Neles não se entra com qualquer traje, e
sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os seus claustros marmorizados ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o paraíso: não há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode pagar à vista, sente-se no céu; quem recorre ao cheque especial ou ao crediário, no purgatório; quem não dispõe de recurso, no inferno. Na saída, entretanto, todos se irmanam na mesa "eucarística" do McDonald’s.
A Young & Rubicam comparou as agências de publicidade aos missionários que difundiram pelo mundo religiões como o cristianismo e o islamismo. "As religiões eram baseadas em idéias poderosas que conferiam significado e objetivo à vida", declarou o diretor da agência inglesa.
A fé imprime sentido subjetivo à vida, objetivando-a na prática do amor, enquanto um produto cria apenas a ilusória sensação de que, graças a ele, temos mais valor aos olhos alheios. O consumismo é a doença da baixa auto-estima. Um são Francisco de Assis ou Gandhi não necessitava de nenhum artifício para centrar-se em si e descentrar-se nos outros e em Deus.
O pecado original dessa nova "religião" é que, ao contrário das tradicionais, ela não é altruísta, é egoísta; não favorece a solidariedade, e sim a competitividade; não faz da vida dom, mas posse. E o que é pior: acena com o paraíso na Terra e manda o consumidor para a eternidade completamente desprovido de todos os bens que acumulou deste lado da vida.
A crítica do fetiche da mercadoria data de oito séculos antes de Cristo, conforme este texto do profeta Isaías: "O carpinteiro mede a madeira, desenha a lápis uma figura, trabalha-a com o formão e aplica-lhe o compasso. Faz a escultura com medidas do corpo humano e com rosto
de homem, para que essa imagem possa estar num templo de cedro. O próprio escultor usa parte dessa madeira para esquentar e assar seu pão; e também fabrica um deus e diante dele se ajoelha e faz uma oração, dizendo: "Salva-me, porque tu és o meu deus!" (44, 13-17). Da religião do consumo não escapa nem o consumo da religião, apresentada como um remédio miraculoso, capaz de aliviar dores e angústias, garantir prosperidade e alegria. Enquanto isso, Ele tem
fome e não lhe dão de comer (Mateus 25, 31-40).
Fonte:http://glauberataide.blogspot.com/2008/05/religio-do-consumo-por-frei-betto-o.html
2 comentários:
E isso passa nas nossas vidas como coisas ditas normais. semana passada fui ao mercado aproveirar a promoção de azeite, e sai de lá "atordoada" estamos na época da páscoa, o apelo visual é terrivel, as embalagens, cores, vendedores de sonhos e alegrias tomam conta dos corredores.... o supermercado vende embalagens e marcar e não produtos, mas se a gente parar para analisar é capaz de comer a embalagem mesmo, porque é o mais saudavel e tem menos convervantes que a propria mercadoria comprada, temos que pensar e muito antes de comprar alguma coisa, será que isso é realmente necessário?
Belos textos. Já li um livro escrito por Frei Beto que traça bem estas idéias O livro é "Gosto de Uva". Recomendo. Os pensamentos do texto vai de encontro com aquilo que sempre prego inclusive, que estamos criando cada vez mais uma sociedade de consumo e competitiva quando precisamos de uma sociedade mais igualitária e colaborativa. Fiz uma postagem no meu blog sobre as coias funcionam, talvez exemplifique o texto. http://blog.silva.eti.br/2008/10/como-as-coisas-funcionam.html
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