Um desencontro singular
Eu ainda morava no Rio quando aconteceu o curioso episódio que vou relatar. Era estudante e além de me entranhar na vida cultural carioca, trabalhava e ainda encontrava tempo para folhear os livros acadêmicos...
À época, era dado a conhecer escritores. Um deles, o grande Orígenes Lessa, fui visitar em Copacabana. Muito bem recebido, pudemos conversar por algumas horas. Tempos após escrevi ao Carlos Drummond de Andrade e - para minha grande alegria - recebi-lhe como resposta um breve cartão, quase um bilhete. Depois do que vou narrar, ainda conheci Jorge Amado. Ganhei autógrafo e afaguei-lhe o ombro (o que foi motivo de brincadeira em casa, pois diziam que todos a quem eu tocava daquele modo morriam...)
Lia muito. Quase tudo que me caia às mãos. Coisas saborosas como as crônicas do começo do século do João do Rio, os enigmáticos contos da Clarice Lispector, Victor Hugo e muita literatura infantil. Além disso, arriscava algumas linhas. Escrevia as primeiras crônicas, muitas cartas e umas poucas poesias.
Foi nesse clima de efervescência cultural que viajei para São Paulo, para visitar uns amigos.
Tomei o ônibus da meia noite para poder dormir e aproveitar melhor o dia seguinte.
Ao sentar-me, achei estranho o personagem que viajaria comigo, ao meu lado. Cabelos negros até os ombros, magro, rosto anguloso, enfim um tipo nada convencional. Pensei comigo se não o conhecia de algum lugar. Deu-me um comichão e decidi buscar um lugar vago mais para trás, para poder esticar as pernas, dormir melhor ou quem sabe fugir mesmo da presença inquietante daquele senhor...
Fui lá pra trás e acabei sentado ao lado de um paraíba, um nordestino que morava no Rio, bom de conversa. Disse paraíba pois é assim que os cariocas denominam todo e qualquer nordestino, às vezes de forma pejorativa, o que já pude experimentar na própria pele, por conta de simples vacilo ao tomar um ônibus...
Bem, conversa vai conversa vem e eu intrigado com o personagem que deixara lá no banco da frente. Porém, o amigo ao lado era um bom contador de histórias e fui ouvindo suas experiências de vida na cidade grande. Experiências com sabor acentuado de aventura.
Uma delas, a qual valeu toda a viagem, aconteceu no Catumbi, próximo ao Sambódromo. Ele subiu o morro para visitar um amigo e se agarraram numa conversa que se estendeu muito além do previsto. Quando ele se deu conta era quase madrugada. O amigo insistiu para que ele ficasse, que pousasse ali mesmo, pois apesar do aperto sempre se dava um jeito. Nada o convenceu.
Decidido, tomou o caminho de casa. Na descida do morro viu um sujeito suspeito, pronto para lhe assaltar, presumiu. Quando se deu conta plenamente do perigo iminente, não dava mais para recuar. Tinha sido visto e estava sendo aguardado. Lembrou das advertências do amigo e engoliu em seco. Que besteira! Foi caminhando, então, devagar, para ganhar tempo. Súbito, a inspiração. Diminuiu ainda mais o passo. Cambaleou para os lados e apertou com as mãos o estômago. Começou a gemer baixinho. À medida que caminhava, gemia mais alto. Até que ao chegar no ponto fatal, o sujeito o cercou e perguntou o que estava acontecendo. Disse estar muito mal, vomitando sangue e se não fosse direto para o hospital, poderia morrer ali mesmo.
O negão (como o chamou) não pensou duas vezes. Tomou-o praticamente nos braços e desceu com ele os últimos lances do escadão. Parou o primeiro táxi. Ordenou ao motorista que levasse o seu camarada ali para o pronto-socorro. Rápido e de graça, ainda frisou.
Bem, o resto da história é de se imaginar. E rir. E de se ver ainda que diante da dor alheia, em certas circunstâncias, se comovem os mais duros corações...
Ao final da viagem, lembrei quem era o tal personagem: Ferreira Gullar, o grande poeta maranhense. Até hoje não sei se o que conversaríamos teria o mesmo sabor que as histórias daquele outro nordestino. Quem sabe? A conferir, num próximo e incerto encontro...
Um comentário:
Amei!
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