O velho e bom latim carrega em seus vocábulos, utilizados fartamente na linguagem jurídica, suas "razões de imediata aplicação" em circunstâncias corriqueiras ou emergenciais. Quer ver?
- Doutor, eu tinha que fazer aquilo!
- Como assim, meu cliente?
- Uma voz me dizia...
- E o que ela dizia?
- Que o meu caminho já estava traçado...
- Mas que caminho?
- O caminho para o fim.
- Fim do dito cujo?
- Não, doutor! Também estudei e sei que fim é o mesmo que objetivo. Os objetivos nobres podem ser chamados de missão... Eu tinha, portanto, uma missão.
- Que raio de missão, meu cliente?!
- Criar os meios para se atingir o fim, ora!
- Ahn?!
- Isso não é filosofia, doutor? Não é lógica pura?
- Sim, mas que fim, que objetivo, que missão importante era essa? Estão te acusando de ter matado uma pessoa... Eu espero não ouvir de sua boca que você é o assassino... Aliás, não ouvirei, pois aos advogados conversas de cunho confessional não convencem. O que importa são os fatos. E o fato é que você não estava presente na cena do crime.
- Doutor, eu não estive lá, materialmente falando, é verdade. Mas sei que foi meu pensamento que lá se materializou, de alguma forma.
- Tu é leso, é? Você vai dizer isso ao juiz, vai?!
- E quem acredita em "poder do pensamento", doutor?
- Sim, claro! Ainda bem...
O advogado respirou mais aliviado. Restava uma questão, porém, a esclarecer:
- E que "meios” são estes “para se atingir o fim"?
- Quando se criam as condições para que uma vingança seja executada, isso não é o mesmo que prover meios para se atingir um fim pré-determinado?
- De certa forma, sim. Mas aonde você quer chegar?
- Eu apenas "devolvi" àquele sujeito a ameaça que ele me fez. Só pensei (eu juro!) que tudo que ele me desejasse, de todo coração, que ele tivesse em dobro. Foram dois tiros, não foi?
- Sim. Mas e a tal da missão?
- Sou gari, doutor. Minha tarefa de todo dia é limpar a cidade. Então, naquela hora eu me imaginei varrendo do mapa, da vida, todas as pessoas que vivem para humilhar os mais simples... Ele era muito abusado, pisava na gente.
- Mas teve o que mereceu!
- Não sei, doutor, não sei. O que eu e o senhor mereceremos, por nossa vez? Somos pecadores... Eu não devia ter desejado tão firmemente que ele recebesse de volta o que me desejava!
- Ele desejou o quê, homem de Deus?!
- Ele disse que pessoas como eu, que se metem a fazer tudo certinho, merece uma bala nos cornos, para deixar de ser besta! Que ele mesmo me meteria uma, se não custasse muito caro... Disse mais: que eu não valia "uma vela acesa".
- Não vá dizer que a praga da "vela apagada" foi você quem jogou?
- Como assim, doutor?
- No velório do dito cujo não ficou nenhuma vela acesa... Foi você quem desejou isso?
- Foi sim!
- E o que mais?
- Não posso dizer.
- Ah, você me dizer sim, do contrário...
- Doutor, o senhor está mesmo me ameaçando? Vê lá, hein, eu não tenho controle sobre os meus pensamentos e desejos... O senhor que se cuide!
- Eu, você está louco?! Isso foi só força de expressão... Mas se você puder me contar, sou de todo ouvido.
- Conto nada! Descobri esta semana que não basta eu pensar... As coisas só acontecem depois que falo com alguém. Aí o mal ganha força e sai pelo mundo causando desgraça. Da minha boca não sairá mais nada!
- Ufa! Ainda bem.
- Mas ontem, doutor, eu comentei com a minha esposa, que o senhor é muito careiro; que se não conseguisse negociar um preço melhor eu acabaria amaldiçoando o senhor e todos os advogados do mundo! Ô raça que se aproveita dos necessitados!!
- Meu cliente, você já ouviu falar do pro bono?
- Ainda não, mas eu gostei da sonoridade! É latim?
- Sim, é uma citação latina e significa "para o bem".
- Para o bem de quem, doutor?!
- De todos. Principalmente do senhor, que passará a ter o meu serviço gratuito, desde agora. Farei justiça! O senhor, além de inocente, é um homem de poucas posses.
- Doutor, o senhor é muito gentil...
- Imagina! É um dever meu prestar serviços voluntários, vez ou outra... E desta oportunidade eu não abriria mão de maneira alguma!
2 comentários:
Ótimo texto, Abel. E mais: esse texto dá um ótimo curta-metragem. Parabéns, meu amigo.
Fique a vontade para fazer o roteiro, Carlos!! Grtao!
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