sexta-feira, 29 de maio de 2009

Crônicas e ensaios V

Liga-Desliga

"Nem só de pão vive o homem..." Mateus (4:4)

Dia desses eu estava a conversar algumas trivialidades com uns amigos. Comentários despretenciosos sobre certas coisas da vida, algumas engraçadas, outras curiosas. Bate papo com os amigos precisam desses elementos. Muitas vezes é a partir de uma consideração sem maior importância, que nos aprofundamos em assuntos mais sérios. No meio dos citados amigos tinha uma criança. Menina inteligente e sensível, estava ali nos ouvindo, nos espiando. Pude perceber toda essa sua atenção, quando observou, minutos depois, roda desfeita: "oh tio, por que o senhor vive olhando para o tempo?"

Uma boa pergunta. Por que vivemos olhando para o tempo? Esse olhar o tempo, não era um olhar meteorológico, como aqueles que varrem o céu a procura de indícios de sol ou chuva. Era o olhar vago, depois que se perdem em horizontes distantes. Foi o que lhe respondi, ao acrescentar que deixara o meu corpo ali e estava passeando por aí. Que era uma maneira muito barata de viajar; que dessa maneira era possível exercitar a imaginação e outras bobagens mais. Eu ri. Ela também, embora levasse o assunto muito mais a sério. Contou que um colega seu na escola é também assim: "Ele fica uns dois minutos virado para a parede, olhando não sei o quê, depois volta e acorda. Eu pergunto, então, em que ele estava pensando e ele nunca sabe..."

Não sei se é comum a todos esses estados de desligamento, desprendimento. Ou será um estado de pensamento profundo? Um amigo nosso, dado a esses vôos, tem às vezes problemas conjugais graças a estas viagens. Ao voltar à realidade, é difícil explicar à sua esposa por onde ele esteve. 

Partilhar de viva voz o que trazemos de tão longe ou profundo é, às vezes, impossível, ou muito desgastante. É como viver uma experiência inédita, inusitada e tentar descrever para os outros o que se viveu, de imediato, sem que nos deixem descansar da jornada. Faltam-nos palavras. 

A despeito dos pequenos problemas que os estados de alheamento pode nos causar, esse olhar para dentro sempre nos faz bem. Os próprios aparelhos eletrônicos estão sendo programados para trabalhar assim, em stand by, em estado de quase dormência, mas de prontidão; um simples sinal de atividade e eles se reativam. Viver alucinadamente preso aos duros acontecimentos de cada dia, pode nos levar a sobrecargas que nos causam sérios danos físicos e psicológicos. Aprender a ligar-se e desligar-se, dessa maneira, é fundamental. O resto é imaginação, fantasia e sonho. O que recomendamos também nunca se dispensar.

Seção Requentação (Porto Velho, 28 de outubro de 1998)

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