BOM PARA A VISTA
Sabe o que me disse o oftalmologista
no meu último aniversário?
- Muitos anos de vista para você!
Brincando, retruquei:
- Sou um homem de visão, doutor!
- Sei! Esta gracinha é velha e até
um cego já me disse isso...
- E o senhor respondeu o quê?
- Fiquei sem ação, mas segundos
depois ele completou: "De visão interior, é claro!"
- O senhor acredita em "visão
interior", doutor?
- Piamente! A gente vê aqui fora o
que está cheio o nosso coração e a nossa mente.
- Achei que isso era um pouco de
exagero...
- Nada! As lentes ficam mais lá para
dentro, bem além da córnea, do nervo ótico... Vou te contar um caso.
Felizmente, a minha era a última
consulta do dia e ele parecia não estar com nenhuma pressa. Nem ele, nem minha esposa, que se
acomodou numa poltrona e, discretamente, nos ouvia.
Ele nos contou, então:
Um dia chegou aqui um pai com seu filho, de uns 8, 9 anos. Dizia que o
menino não conseguia copiar quase nada direito do quadro. Trouxe até o seu
caderno.
Abri o caderno e me bastou ler duas frases para fechar o diagnóstico.
O inferno é a estação das chuvas.
Todo pidão pode trazer, de volta, a vontade
de comer com os amigo.
Na mesma hora
escrevi uma frase e projetei para ele ler:
Na prisão, meu camarada, a gente
come macarrão todo dia! Carne? Só se for de rato, de mucura, de gambá! Aqui é
um inverno. O filho chora e a mãe não vê!!
Ele tropeçou
apenas em uma palavra. Inverno virou inferno. O resto ele leu perfeitamente.
O pai me pediu que eu traduzisse a segunda frase. “Todo perdão pode
trazer, de volta, a vontade de conviver com o inimigo”. Ele ouviu, pensou,
pensou e ficou ali, espantado, sem saber o que dizer...
Chamei minha secretaria e pedi que ela servisse um lanche ao menino,
enquanto eu conversava com seu pai. Este, na sua simplicidade, soube
diagnosticar:
- Meu filho está cheio de coisas ruins na cabeça...
- E principalmente no coração! Parece que a palavra perdão não tem
sido muito usada lá em sua casa.
- Não mesmo!
- Que programas de televisão ele tem assistido?
- Nem sei! Mas desconfio que não é coisa boa.
- Olha, traga ele aqui na sexta-feira. Vou dar uns presentes a ele.
Foi assim que me desapeguei das minhas coleções de brinquedo, que
ainda guardava. Gibis, revistas, carrinhos, o meu patinete...
- E para mim, doutor, o que seria bom para a vista?
- Vou te aviar uma receita.
Esta receita a tenho até hoje, emoldurada
na sala. O danado sabia também desenhar. São três palavras e os esboços
respectivos: livro, música e amigos.