segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

As três filhas (fábula tártara)


Uma mulher pobre tinha três filhas. Dia e noite, ela trabalhava para alimentar e vestir suas meninas.

Elas cresceram rapidamente como as andorinhas e seus rostos brilhavam como a lua cheia em noite escura.

Uma após a outra todas se casaram e foram com seus maridos para um lugar um pouco distante.

A mãe ficou sozinha, cheia de saudades. Junto dela não havia ninguém, a não ser um esquilo de pelo avermelhado.

Quando se sentia muito triste, a mulher conversava com o pequeno animal.  

Passaram-se alguns anos e aquela mãe envelheceu. Um dia ela ficou tão doente que chegou a pensar que morreria sem ver as filhas. 

- Esquilinho, meu amigo, ela disse – corra e vá até as minhas filhas! Diga a elas que venham com urgência, que não demorem! 

O pequeno esquilo correu até a casa da filha mais velha e lhe disse o que sua mãe havia ordenado. 

- Ah! lamentou-se a filha – Eu gostaria muito de ir, mas preciso lavar estas duas bacias de louça.  

- Lavar estas duas bacias de louça?! – esbravejou o esquilinho. – Então, fique grudado nelas!  

As duas bacias logo saltaram da mesa e abraçaram a filha mais velha, pelo alto da cabeça e por debaixo dos pés. Ela caiu e se transformou em uma grande tartaruga, que saiu se arrastando para fora. 

Correu o esquilinho até a segunda filha e lhe entregou a mesma mensagem.

- Ah, como eu gostaria de ir correndo ver minha mãe, mas eu estou tão ocupada! Tenho que terminar de tecer esta rede para vender na feira. 

Esbravejou novamente o animalzinho: 

- Tecer a rede? Então continue tecendo por toda a vida, sem parar nunca mais! 

A segunda filha foi transformada em uma aranha. 

Correu, por fim, o pequeno esquilo até onde morava a filha mais nova, que naquele instante fazia pão.

Ao saber o que estava ocorrendo com sua mãe, não disse nada e nem mesmo as mãos ela lavou, tendo saído correndo em direção à casa materna. 

Ela ainda encontrou sua mãe viva e passou ao seu lado algumas horas, em que pode conversar com ela, abraçá-la e dizer o quanto a amava! 

- Leve consigo, para sempre, muita alegria, minha menina – disse o esquilinho à filha mais nova daquela mulher. – Todos que você encontrar pelo caminho haverão de proteger e de cuidar de você, dos seus filhos, netos e bisnetos...

E assim aconteceu. A terceira filha viveu muitos anos em segurança e cercada de carinho. 

Quando chegou sua hora de morrer, ela se transformou em uma pequena abelha dourada.  

No verão é possível vê-la a colher néctar para que nunca falte mel no mundo. 

Ela pousa em todo pão doce que encontra e, depois de experimentar um pedacinho, volta para casa. 

No inverno, quando o frio ameaça congelar tudo, a abelhinha dorme em sua quente colméia e nas poucas vezes em que desperta, ela come mel e bebe suco de frutas.

Esperantigis Bronislav Ĉupin (Rusio)
http://esperanto.china.org.cn/EL/EL/ElPopolaCxinio/bd98-9-9.html

Traduziu do Esperanto para o Português: Abel Sidney
Disponível em: www.abelsidney.pro.br/acervodigital/rea/astresfilhas.pdf




quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Parecenças


Quanto suor!

E pensar que para soar falso
nem é preciso fazer força...

Tem gente - e pode ser a gente mesmo -
que tem uma estranha habilidade
de parecerem consigo mesmas,
exaustivamente, copiosamente
de tanto repetir-se
seja nas grandes e ousadas
tentativas de fazer-se presente
seja nas pequenas torpezas...

seja tu mesmo, tatu!
nem cutia, nem capivara
nem onça pintada, nem tuiuiú...

Nota: a partir do poema do Binho, abaixo:

Disfarces

diz
que
me
ama
e
assoa
o nariz

tão
real
que
soa
falso

rio
feito
quem
sabe
e
se
cala


terça-feira, 1 de novembro de 2011

Um autor que recebe cartas e as responde...


O programa livro-carta-mural está seguindo o seu curso, como o Rio Madeira, que banha nossa cidade e se espraia adiante, avante, atravessando fronteiras até deixar-se consumir/consumar no Rio Amazonas, de quem é afluente da margem direita (como todos sabemos, mas não custa acrescentar!)

Com o livro-carta fluindo, dias letivos se consumindo rumo às férias, os alunos começam a se corresponder com este autor praticamente anônimo e, em razão disso, desconhecido do grande público (o que é uma benção, podem acreditar!)

Hoje, ainda agorinha, recebi uma dúzia de cartas, de uma das escolas do programa, a Escola Municipal Pé de Murici, no bairro Planalto. 

Cartas com envelopes gigantes, desenhados e enfeitados com figuras em relevo, feitas com E.V.A. 

Na primeira que abri, recebo algumas boas traçadas linhas do Kauã, que me diz:

Ontem eu falei para minha colega que estas histórias são muito legais. Eu mal posso ver as outras histórias! Meu nome é Kauã... Ponto final, tchau!

Recado esperto, rápido, com um grande abrupto, que encerra tudo com chave de ouro e rima.

Ele ainda desenha uma mangueira (a fruta da época) com algumas boas mangas penduradas e duas crianças sob a árvore. Simples assim. Terno assim.

Eu, agora, responderei estas e outras cartas, uma a uma. Enviarei cartões (do Ceó Pontual), assinaturas, como esta abaixo e outros mimos, que eles bem merecem.

É isso. Sigo contente na minha condição de escrevinhador bem situado neste quadrante da Amazônia Ocidental, ainda desconhecido, mas aguardando que nossos escritos cruzem as fronteiras desta terra e se espalhem por aí, soprados por bons ventos.





segunda-feira, 8 de agosto de 2011

crônica a propósito e em torno do futebol


Torneio ou jogo?! 

João, li sobre o jogo. Veja aí:

"Mundial Interclubes 2011 - Com certeza o jogo do ano será a final do Mundial Interclubes 2011 que pode ser disputada no jogo Santos x Barcelona caso as duas equipes ganhem os jogos das outras equipes tecnicamente mais fracas como Auckland City, da Nova Zelândia e Monterrey, do México.

A data dos jogos do Mundial Interclubes 2011 será do dia 8 ao dia 18 de Dezembro, torneio que será realizado no Japão e organizado pela Fifa."

Se eu, como professor, fosse explicar para alguém o que é "um torneio" eu diria o seguinte: 

- O Santos não fará um jogo contra o Barcelona. Ele disputará um torneio.

- Torneio? - algum aluno responderia.

- Sim, torneio é um "evento em que se defrontam dois ou mais competidores", como está lá no dicionário. 

- Mas por quê não chamam isso de copa ou campeonato?!

- Boa pergunta! Copa é um torneio mais demorado, com muitas equipes (Copa América, Copa do Mundo etc.). Campeonato é um torneio mais demorado ainda, com muitos meses de competição (como o Campeonato Paulista, o Campeonato Brasileiro). 

- Mas tudo não é torneio?!

- Tudo é torneio, mas no futebol quando se diz que "haverá um torneio" esta competição esportiva será "breve, de curta duração". Entendeu?! 

- Mais ou menos...

- Mas você sabe que o Santos disputará um grande  torneio neste final de ano? 

- Sim, o Mundial Interclubes, que não é apenas um jogo do Santos contra o Barcelona...

- Isso mesmo! E tem mais dois times, menores, que também participam deste torneio.

- Menores? O que dizer times menores?! Eles tem jogadores a menos? Ou os jogadores são baixinhos?

- Não!! não são times de anões, nem jogam com menos jogadores. Eles são menores porque não são os maiores e melhores times. Entendeu?!

- Não!

- Como não?!

- O Auckland City é o time que mais ganhou campeonatos na Nova Zelândia. Eu li isso lá na Wikipédia...

- É mesmo!? Essa eu não sabia! Mas mesmo sendo o melhor time da Nova Zelândia ele é considerado, mundialmente, uma equipe de pouca expressão, um time pequeno...

- Tá legal! Cansei dessa conversa. Vou embora. Tchau!

- Ei, aonde você vai?!

- Jogar bola! 

- Ah, sim. Boa ideia. Você vai participar de algum torneio?!

- Que nada! É só uma pelada.

- Pelada?! 

- Vai dizer que o senhor não sabe o que é uma pelada?! 

- Já ouvi falar...

- O senhor está querendo brincar comigo, isso sim!!

- Brincar?! Brincar de quê?!

- Brincar com as palavras, só pode!

- Ainda bem que as brincadeiras com as palavras não tem nada a ver com torneios, com disputas, não é?!

- Acho que tem sim! Tem a brincadeira do Stop, que é uma disputa!

- Disso eu não sei brincar,  mas você pode me ensinar, não pode?!

- Acho que sim. Mas só depois de jogar a minha pelada.

- Pelada?!

- Ah, professor,  o senhor não tem jeito não! 

terça-feira, 5 de julho de 2011

crônicas ou quase isso (iii)

Tocando em frente

      "Conhecer a marcha, ir tocando em frente..."
      Renato Teixeira e Almir Sater
       
Destino, sorte, estrada são temas frequentes na poesia do nosso violeiro, romeiro e caipira Renato Teixeira. Ele prossegue, tocando em frente, como no título de sua canção, título hoje de nossa crônica. Em Cavalo Bravo ele escreve: "E lá vou eu mundo afora / Montado em meu próprio dorso". Montar no nosso próprio dorso, tomar as rédeas na mão e tocar a vida, eis o sentido e o rumo a seguir.
O aprendizado para nos tornarmos o condutor do próprio destino não é fácil. Poucos têm a exata noção de que somos nós quem desenhamos as linhas do próprio destino, na palma da mão. O que as ciganas lá possam ler está sendo escrito e reescrito todos os dias, por nós mesmos. O que estamos a plantar, naturalmente colheremos mais tarde. Quanto à possibilidade delas lerem o nosso futuro é outra questão, que não cabe aqui debater, embora eu acredite que seja possível esse descortinar das coisas que ainda estão por vir.
Discutindo sobre o tema com um amigo, ele me narrou uma pequena história, real, que pode muito bem ilustrar o que vimos escrevendo. É preciso dizer que ele, como preâmbulo, ensinou-me um pouco sobre os mitos gregos.
Contou-me que os gregos tinham uma concepção trágica do destino. Um bom exemplo era o mito de Sísifo, aquele do homem condenado a rolar uma pedra até atingir o topo de um monte para depois vê-la rolar em direção ao vale, sendo obrigado a repetir eternamente o mesmo ato, sem nunca conseguir atingir o seu objetivo. O destino, para os gregos, estava nas mãos dos deuses, que inclinados às nossas paixões, eram humanos, demasiadamente humanos...

Eis a história:

Certo professor no interior do Rio Grande do Sul, desses de escola primária, começou a se destacar no seu trabalho junto aos alunos, que com ele aprendiam línguas, entre outras disciplinas que não constavam no currículo.
Francisco Valdomiro Lorenz, proveniente da República Tcheca, fugira da Primeira Grande Guerra e viera para o Brasil. Poliglota e dotado de uma vasta cultura geral, não passou desapercebido, tendo suas habilidades sido reconhecidas pelo governo gaúcho.
A despeito da estranheza de um intelectual de seu porte ter escolhido um daqueles grotões para viver, ele adaptou-se bem àquela vida simples, podendo se dedicar com mais afinco à sua especialidade: escrever ensaios sobre línguas, criar dicionários e outras tarefas tão nobres, quanto difíceis.
Um aluno seu, de porte franzino, tinha uma estranha síndrome, que se caracterizava pelo quase total alheamento da vida. Nada fazia sentido para ele. Era adepto do "tanto faz, como tanto fez" ou do "ah, tá bom assim mesmo!".
Descobriram que o seu pai, por uma dessas deformações das idéias religiosas, deixava tudo nas mãos de Deus, inclusive a sua roça, que estava entregue às pragas. Diziam que em suas mãos não existiam calos, pois não era dado ao trabalho. O filho seguia os passos do pai.
O professor, então, decidiu despertá-lo do seu torpor. Convocou todos os alunos a cavar um poço. O menino, arredio, ficou por perto, apenas observando. Após terem cavado mais ou menos quatro metros o professor propôs que o menino fizesse a sua parte, que ele cavasse. Desceram-no por uma corda e ele, meio a contragosto, pôs-se a cavar. Vinte minutos depois ele pediu que o tirassem de lá, pois se cansara. Os alunos e o professor, no entanto, nesse meio tempo haviam ido tomar água. Quando voltaram o encontraram aos gritos. O professor amarrou a corda no sarilho, a soltou e disse que a ele cabia o esforço da subida; que não o puxariam, pois estavam todos muito cansados...  
Lorenz ainda lhe informou que ele e seus outros colegas estavam indo tomar banho no córrego; que ele não demorasse muito; que eles o esperavam lá. 
Ele não teve alternativa senão subir sozinho, a duras penas. Quando, porém, atingiu o topo, todos lá estavam a esperá-lo. Aplausos e abraços. Ele não sabia o que dizer, todo encabulado que ficou. O professor, então, o felicitou dizendo:
- Muito bem, hoje você aprendeu uma preciosa lição. E você mesmo nos dirá qual é... Responda: onde estava o teu destino quando estavas sozinho lá dentro do poço tendo apenas a corda como tua companheira?
Timidamente ele respondeu: "Nas minhas mãos".
O professor reforçou a lição, dizendo que o nosso destino está sempre em nossas próprias mãos; que a nós cabe tomar as rédeas e nos conduzir, acreditando que Deus faz a sua parte e que a nossa caberá a nós fazermos.
O meu amigo, muito modesto, não me contou, mas ele próprio fora aluno do tal professor e personagem da história. Se ele mesmo era o menino, não me contou... 

surto poético intermitente (xi)

onde vai parar toda esta literatura?

Que ela chegue aos corações e cure muitas feridas...

Quanta gente aflita desejosa de ouvir gente amiga
mesmo que por meio de palavras escritas
pousadas em cartas, em contos, poemas
com rimas ou sem rimas
desde que cada dito se entrelace e crie
meios seguros, bem ditos
de expressar o que vai, por caminhos diretos ou poéticos,
a um endereço certo:

- o ser inteiro
corpo, cérebro, coração
que pede bálsamo ao peito clamando sem voz
o que carrega lá dentro
- lava ardente ou água fria
que importa a sintomatologia?

A palavra não detém a cura ou qualquer poder
que se transforme em direta prescrição
com receita pronta ao paciente
desejoso de sorver como pílula
letra a letra, guiado pela bula
medicamento certo para cada ocasião...

Palavra pode ser cura,
se lhe deixam chegar ao peito
e, por caminhos ainda insuspeitos
num salto, um pulinho
caia logo ali no coração
que, bom parceiro, não despreza o que vai
encerrado ao crânio
e se correspondendo com o cérebro
trocando impressões e justos argumentos
vão juntos, solidários, amigos
pelos (des)caminhos da razão
acrescentando à sopa das letras
que lhes despejam às vezes aos borbotões
- claros raciocínios, maduras reflexões
tudo conjugado, entrelaçado
graças ao poder sutil e amigo das palavras.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

crônicas ou quase isso (ii)

Um desencontro singular
Eu ainda morava no Rio quando aconteceu o curioso episódio que vou relatar. Era estudante e além de me entranhar na vida cultural carioca, trabalhava e ainda encontrava tempo para folhear os livros acadêmicos...
À época, era dado a conhecer escritores. Um deles, o grande Orígenes Lessa, fui visitar em Copacabana. Muito bem recebido, pudemos conversar por algumas horas. Tempos após escrevi ao Carlos Drummond de Andrade e - para minha grande alegria - recebi-lhe como resposta um breve cartão, quase um bilhete. Depois do que vou narrar, ainda conheci Jorge Amado. Ganhei autógrafo e afaguei-lhe o ombro (o que foi motivo de brincadeira em casa, pois diziam que todos a quem eu tocava daquele modo morriam...)
Lia muito. Quase tudo que me caia às mãos. Coisas saborosas como as crônicas do começo do século do João do Rio, os enigmáticos contos da Clarice Lispector, Victor Hugo e muita literatura infantil. Além disso, arriscava algumas linhas. Escrevia as primeiras crônicas, muitas cartas e umas poucas poesias.
Foi nesse clima de efervescência cultural que viajei para São Paulo, para visitar uns amigos.
Tomei o ônibus da meia noite para poder dormir e aproveitar melhor o dia seguinte.
Ao sentar-me, achei estranho o personagem que viajaria comigo, ao meu lado. Cabelos negros até os ombros, magro, rosto anguloso, enfim um tipo nada convencional. Pensei comigo se não o conhecia de algum lugar. Deu-me um comichão e decidi buscar um lugar vago mais para trás, para poder esticar as pernas, dormir melhor ou quem sabe fugir mesmo da presença inquietante daquele senhor...

Fui lá pra trás e acabei sentado ao lado de um paraíba, um nordestino que morava no Rio, bom de conversa. Disse paraíba pois é assim que os cariocas denominam todo e qualquer nordestino, às vezes de forma pejorativa, o que já pude experimentar na própria pele, por conta de simples vacilo ao tomar um ônibus...
Bem, conversa vai conversa vem e eu intrigado com o personagem que deixara lá no banco da frente. Porém, o amigo ao lado era um bom contador de histórias e fui ouvindo suas experiências de vida na cidade grande. Experiências com sabor acentuado de aventura.
Uma delas, a qual valeu toda a viagem, aconteceu no Catumbi, próximo ao Sambódromo. Ele subiu o morro para visitar um amigo e se agarraram numa conversa que se estendeu muito além do previsto. Quando ele se deu conta era quase madrugada. O amigo insistiu para que ele ficasse, que pousasse ali mesmo, pois apesar do aperto sempre se dava um jeito. Nada o convenceu.
Decidido, tomou o caminho de casa. Na descida do morro viu um sujeito suspeito, pronto para lhe assaltar, presumiu. Quando se deu conta plenamente do perigo iminente, não dava mais para recuar. Tinha sido visto e estava sendo aguardado. Lembrou das advertências do amigo e engoliu em seco. Que besteira! Foi caminhando, então, devagar, para ganhar tempo. Súbito, a inspiração. Diminuiu ainda mais o passo. Cambaleou para os lados e apertou com as mãos o estômago. Começou a gemer baixinho. À medida que caminhava, gemia mais alto. Até que ao chegar no ponto fatal, o sujeito o cercou e perguntou o que estava acontecendo. Disse estar muito mal, vomitando sangue e se não fosse direto para o hospital, poderia morrer ali mesmo.
O negão (como o chamou) não pensou duas vezes. Tomou-o praticamente nos braços e desceu com ele os últimos lances do escadão. Parou o primeiro táxi. Ordenou ao motorista que levasse o seu camarada ali para o pronto-socorro. Rápido e de graça, ainda frisou.
Bem, o resto da história é de se imaginar. E rir. E de se ver ainda que diante da dor alheia, em certas circunstâncias, se comovem os mais duros corações...
Ao final da viagem, lembrei quem era o tal personagem: Ferreira Gullar, o grande poeta maranhense. Até hoje não sei se o que conversaríamos teria o mesmo sabor que as histórias daquele outro nordestino. Quem sabe? A conferir, num próximo e incerto encontro...

surto poético intermitente (x)

De herança, o coração

Certo poeta egoísta e glutão
não disfarçava nunca sua fome
de gozo, cupidez, retenção – dizia o conto.

Ele gostava de reter, sob seu controle
tudo o que pudesse usufruir –
das palavras coletadas nos dicionários
ou recortadas em velhas revistas
até retalhos de memória (alheios ou seus)
anotados em pequenas tiras de papel (...)

Depois de colecionar organizadamente ricas rimas
e chaves de ouro capazes de abrir o entendimento
à mais profunda compreensão
ele ainda achou pouco e decidiu resoluto:
“conquistarei a própria imensidão!!”

Assim lançou-se na aventura de conquistar
os mais vastos espaços vazios
que alguém um dia possa imaginar:
terras abismais na lua, cidades submersas,
reinos suspensos por intricados cipós
em florestas seculares

Ou ainda recortes amplos do céu,
pedaços de solo intocados em
certos reinos da imaginação (...)

Descobriram depois, em tempo,
que ele era, em verdade, pródigo semeador,
autêntico caçador de sentidos
de novos olhares sob velhos motivos.

E tanto partilhou seus achados poéticos
doados, emprestados, lançados ao léu
como quem lança semente de mãos cheias ao chão,
que ele decidiu para si mesmo apenas reservar
um pequeno terreno, para construir um abrigo –
desses de terra batida, que alberga repentinos desenhos,
toscos riscos, enigmas, mistérios escritos a carvão...

Decidiu, também, escrever na própria lápide
a lhe guardar mais tarde os restos corpóreos (não os aéreos):
“no espaço infinito do vazio
que vai das estrelas mais distantes
ao mais rente canto do chão
entre rostos, abraços e sorrisos
deixo de herança meu coração”.

Ele não sabia, modesto,
do que carregava pleno no peito,
mas descobriram em tempo
de lhe preservarem certos anônimos feitos,
forjados à sombra de discretas aventuras

...ele que levara com graça, ato e palavra, ventura
aos que na vida, sorvem em meio aos soluços
seus travos intensos de amargura.

A partir e, em certa medida, um aceno ao poeta Manoel de Barros.

sábado, 2 de julho de 2011

surto poético intermitente (ix)

Espelho

Se o outro é meu espelho e constrangido me sinto
por ele revelar tão diretamente minhas torpezas
não há de ser certamente contra ele - a imagem
a quem devo combater, inutilmente

Doí-me, ó vaidade das vaidades, cá no umbigo!,
por isso os tantos tremores e calafrios a me percorrer
pois é lá nas entranhas, bem mais fundo
que sinto tudo me revolver

Devo contar tudo, cena a cena, multifocalmente:

...eu era um simples observador da vida
levando uma vida calma, vivendo tranquilamente
até que me deparo com uma imagem transversa,
ou atravessada, às avessas, a me refletir:

Ele era tudo o que eu desejava ser, é verdade...
do que me corroía como medonho ócio
ele fazia, para os outros, prazer e negócio

Parecia que ria de mim, o desalmado,
pois tudo em sua vida se encaixava:
a irritante disciplina do seu fazer constante
a invejada e boa alegria que irradiava
os gestos espontâneos, amigos, que transcendia...

Descobri-me, então, nesse jogo de espelhos
em que a imagem dele, invertida, me parecia convite
desafio a me torturar, por me mostrar tal como eu era:
escravo de tantos vacilos, vivendo teimosamente
desnecessárias agruras e descartáveis prazeres

- Um dia a gente desperta! – eis o que dele ouvi
não com referência a mim, pois que era sábio
e ainda a afagar meu ego, falava das minhas virtudes
como quem lança, discreto, semente boa e resistente
em meio aos meus espinhos naquela difícil estação
quando de Deus nem mesmo eu era temente.

Mas o tempo ecoa, como onda que prossegue
vale adentro, montanha acima, sem cessar
e escoando as horas, eis que do solo da alma
como a brotar de um poço profundo
começa a minar a água viva que então pressinto
já existir em mim, esperando caminho certo
para transitar e se espraiar, em torno e além...

Hoje desse espelho ainda guardo fragmentos
imagens que permanecem vivas, aos recortes
e sinto que por vezes me confundo com o que
vejo refletido, em duplicata.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

surto poético intermitente (viii)

Tua imagem, tua paisagem, teu dia

O tempo só me deixa ver nos teus olhos os fragmentos
certos traços do teu rosto, do teu corpo esguio...

E se busco compor uma paisagem, um cenário
com os recortes das lembranças que se acumularam
não te vejo senão nos cômodos da casa da mangueira ao fundo
e mais ao fundo ainda, um grande valão, assustador e que me atraía
e dali mesmo, da cozinha, da sala, falavas de outros mundos:
o mundo dos mistérios das incontáveis cavernas, da pedra que crescia
da fé que se multiplicava nos festejos todo ano, com tanta gente que vinha
para as justas homenagens à Nossa Senhora...

Para mais longe ainda ias, nas viagens já feitas e sepultadas
de outras cidades, para onde se deslocara e que de lá guardara:
pedras, muita pedraria – falsos brilhantes, vida vazia.
mas destas viagens trouxeste na bagagem um raro pergaminho,
um passaporte para o mundo de vasto conhecimento
que te permitiria te transformar em fada, estrela guia.

Das letras me ensinaste os mistérios, na rua Antonina.
em meio às minhas dores, restaurado eu conseguia
vislumbrar nos livros um novo rumo, uma promessa de novo dia.

E agora que escrevo e posso te incluir nos meus roteiros
nos contos, nas histórias infantis, nos poemas
busco te transformar em poesia.

Nesses dias em que se vão comemorar
de todas as mães o seu dia
fica aqui o meu desejo:
dedicar-te toda minha alegria!!

Para a tia Dagmar, que me alfabetizou, com todo o meu reconhecimento e gratidão.

crônicas ou quase isso (i)

O jardineiro e a morte

Contam que durante a Segunda Grande Guerra, em um dos ataques alemães à capital inglesa, um filósofo refugiou-se em sua biblioteca, situada no porão, junto com seu jardineiro.
O homem simples, de mãos calejadas, buscou na prateleira algumas revistas e pôs-se calmamente a folhear e admirar as suas figuras, pois que era semi-analfabeto. As bombas voadoras eram despejadas sucessivamente, causando pânico em torno.
O filósofo andava de um lado para o outro, inquieto. E em certo instante não conteve a própria curiosidade e perguntou ao jardineiro:
- O que você está fazendo aí, pobre homem, a folhear estas revistas? Não percebes que estamos à beira da morte?
A resposta do jardineiro foi precisa:
- Estou a me preparar para a grande viagem.
E antes que o filósofo algo mais perguntasse, pois que a resposta do jardineiro o deixara perplexo, este complementou:
- Aprendi que se deve manter a fé e a coragem em qualquer circunstância da vida. E se possível, devemos morrer com um mínimo de dignidade, segundo nossas próprias convicções. Eu estou convicto de que a morte é um mero túnel, uma passagem para outra vida. Não vejo, pois, sentido algum em desesperar-me. De duas, uma: ou morreremos ou nos salvaremos; como nas duas alternativas continuarei vivo, segundo minha concepção, não há porque me preocupar.
Antes que o filósofo descansasse o seu cachimbo na mesa, sinal de que retomaria a palavra, ele arrematou:
- O melhor mesmo a fazer é me ocupar com algo que me proporcione prazer. Aliás, veja que belas flores! - disse apontando para uma das páginas da revista.
Ambos se salvaram. O filósofo, agora reticente quanto às suas antigas convicções quanto à vida, seus mistérios e desafios, nunca mais seria o mesmo...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

surto poético intermitente (vii)

Chegou carta!

"- Quando as novas contas chegarem
nem quero estar aqui:
- melhor estar mesmo por aí
vivendo a vida sem pressa
inclusive de voltar pra casa
pois preciso garantir não só
o pão de cada dia
mas principalmente aquele
outro pão - o da alegria
(a patroa entrou, agora, numas de deprê!)

preciso colher qualquer alegria:

- a do cachorro que ao saltar para
comer comida fria, guardada,
dispensada, do outro dia
acaba por encontrar boa companhia
para partilhar a fina iguaria

- a do idoso que coleciona sombras,
ao insistir em acompanhar por cima do muro
a projeção das figuras na parede
que desfilam morro abaixo ou acima...
 
- a da criança que faz ponte improvisada
no filete d'água do esgoto
para fazer passar seu carrinho
feito das artes de sua própria e
improvisada carpintaria..."

Ele chega e descobre que o banco lhe enviou aviso
que o PIS está na conta

Nem precisaria mais das outras alegrias
Imaginadas e já colhidas,
mas assim mesmo comenta
aos poucos os acontecidos do dia
- para espantar, esconjurar a deprê
que nesse instante já debandou...
(o sorriso da patroa se abriu como flor
dessas, que ao sol, de súbito, da vida traz notícia)

Sob inspiração do Fabrício Carpinejar e do Mário Rui
16/julho/2008 |relido e refeito em 23 jan e 29 mar 2011

Histórias inacabadas (v)

Hedzam

capítulo 1

Nasceu em Paris, em 1889, em meio a um rigoroso inverno, o primeiro filho do casal Joachim e Érika, judeus franco-alemães.
Deram-lhe ao menino o nome de Hedzam, em homenagem ao bisavô materno e seu tio Jeremiah, irmão de seu pai, dado a sondar o futuro, vaticinou: “este menino nasceu para percorrer todos os quadrantes do planeta”.
Seu pai era joalheiro, como seu avô e nasceu em terras alemãs, na capital do antigo reino da Prússia - Berlim. A mãe, também descendentes dos hebreus, veio ao mundo numa das belas cidades européias à sua época - Viena, na Áustria.
Joachim era um ourives que sabia dar conta de seu ofício, mas sem brilho, limitado. Em contrapartida, Érika era dotada de mãos que desconhecia limites e, portanto, ninguém conseguia descrever, sem perplexidade, suas múltiplas competências artísticas.
Nas cartas que enviava ao seu irmão gêmeo, que ficara na Prússia, Joachim costumava comentar sobre as artes e engenhos da esposa:

Hans, tenho me perdido em indagações sem fim acerca dos mistérios que permanentemente me assombram: Érika e suas mãos que desafiam qualquer explicação. De onde lhe vem a habilidade ímpar que lhe permite moldar o barro, recortar o papel, esculpir a massa do trigo? Vivo escondendo a autoria dos seus pequenos inventos, para não despertar a inveja alheia. Imagine você que um dia desses...

Ela, na sua simplicidade, se limitava a comentar:
- Que mal há em deixar que minhas mãos traduzam o que imagino, penso e sinto?
Hedzam cresceu assim, neste pequeno grande mundo que era a sua casa, em meio às esculturas em miniatura da mãe e os mapas e globos tão ao gosto do pai, que sonhava viajar, indicando amplidões a se conquistar, sem contar o telescópio, instalado no sótão, que possibilitava passeios pela vastidão dos céus...

capítulo 2

Quem mais influenciaria Hedzam ao longo de sua jornada? 
Penso ser Érika, sua mãe. Outros, que estudarão, um dia, seus traços de personalidade poderão, ainda, detectar a presença firme do seu pai, do seu tio Hans e do seu avô materno. Como se vê, os homens poderiam ter conduzido seus passos rumo à aventura.
Mas, na verdade, foi a mãe de Érika, sua avó materna, quem lhe transferiu, pelos laços da afinidade, a mala e a bússola, a tenda e as panelas... Sofia era uma cigana que nascera na Bulgária, criara-se na Hungria até a adolescência e depois de decidir “tomar rumo próprio” casou-se com seu avô Dimitrius, um judeu grego, em algum ponto do rio Danúbio, possivelmente em uma pacata cidadezinha da Dalmácia, a terra dos dóceis cães alvinegros.
Hedzam, desde cedo, conviveria com estes seus avós maternos, em Viena. Passara lá boas temporadas de férias escolares, quando já se encerrava o século dezenove e o vinte se anunciava com suas promessas de progresso e bem-estar para todos...
Seus avós paternos, nascidos na Alemanha, moravam em Leipzig e se diziam herdeiros diretos da arte musical de Bach. Eram construtores de órgãos e músicos amadores. Sua avó Marlene e seu faro infalível para negócios e seu avô Jacob, homem das mãos firmes e ouvidos afinados, costuma visitá-los em Paris, quase sempre no outono, marcando Hedzam o bastante, contagiando-o com habilidades e gostos que ele iria, ao longo da vida, tomar como seus.
Mas foi Érika quem lhe apresentou, nos cenários que montava na sala de jantar, todos os continentes, seus povos, fauna e flora. Cenários que lhe consumiam semanas de trabalho meticuloso e exaustivo. Como aquele que incluía a erupção de um vulcão, no sul da Europa, próximo de Nápoles...
Já estava a me esquecer do seu tio Oto, o filho mais velho de Jacob, que lutara na guerra franco-prussiana, tendo ele próprio nascido no palco deste conflito, em algum ponto entre a Polônia e a Áustria, no tempo em que as fronteiras destes países se moviam para acomodar o difícil parto da nação alemã. Com este tio, que se tornara voluntário da Cruz Vermelha por décadas, escoteiro e adepto do vegetarianismo, tivera lições de como lidar pacificamente com os conflitos armados.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

surto poético intermitente (vi)

Inauguração

Hoje é sempre a primeira vez
se nossos olhos, na busca
do que não se revela fácil,
permitem sondagens que vão além
do que se vê por aí
(muitos insistem em ver
somente o que se vê toda dia...)

Ora, o rio de águas turvas
que se fez distante miragem
mas que está a alguns passos daqui

Ou o amigo com quem
tecemos tantos momentos
de encantamento
e que nos aguarda, ansioso

Ou ainda os fragmentos de sensações
do que vivemos ao longo dos dias

Tudo isso precisa ser renascido
como na primeira vez...

Passar em revista
fatos, pessoas e impressões
apenas para confirmar:
- tudo ainda está como deve estar?
é próprio da rotina
dos homens de rotina,
de retina viciada...

Todo dia é dia de inauguração:
aquele pedaço de sol poente
ou o retalho de céu
com todos os cambiantes do azul
merece novo recorte...

A tesoura pode ser a mesma,
mas a festa há de ser sempre outra.

Ao Alonso Alvarez,
por efeito de contágio poético |relido e refeito em 15 jul 2008 e em 23 jan 2011