A atenção, o
envolvimento com os brinquedos, diriam alguns, desvia do ouvido infantil
qualquer chamado.
Não se sabia se era o
caso, pois em casa ela ouvia bem. Quando atravessava a
cerca da casa vizinha, porém, apagava-se o sentido da audição.
A audição aguçada é
para poucos, li em algum lugar. Diziam os antigos que os tuberculosos, por
conta do isolamento a que eram forçados, tinha este sentido muito apurado.
Ter ouvido de
tuberculoso pode ser, hoje, sinônimo de enxerimento, de se desejar ouvir mais
do que se deve, principalmente coisas da vida alheia.
E o ouvido de
mercador? Nem sempre os comerciantes estão dispostos a baixar o preço de suas
mercadorias. Daí eles ignorarem, sem nenhuma solenidade, nossas propostas de
barganha.
Hoje a menina
atravessou a cerca para o lado de lá.
Do lado outro não sei
o que existe ao certo, além do quintal cheio de árvores e uma varanda nos
fundos da casa da vizinha.
É comum que algumas
crianças cheguem até a cerca, do lado de cá, atravessem este limite tão frágil
e venham aqui brincar.
Estas outras meninas
ouvem muito bem. Questão de genética? Pouco provável. Os comportamentalistas
talvez expliquem o caso por meio dos estímulos e reações. Como elas podem
apanhar da mãe quando desobedecem, costumam prontamente atender ao chamado.
A menina brincou por
lá, mas não estava cumprindo o combinado.
Mãe adora combinar
horário. Dá segurança. O controle fica à mão, nos ponteiros do relógio. Relógio
que pulsa, por vezes, nos compassos do coração. Ou da razão, quando o coração
não aguenta mais...
Com criança o tempo é
algo mais vago, sem recipiente que o comporte.
- Volte logo! Não vá
demorar, senão da próxima vez...
Os filhos, da
adolescência até mais um pouco, costumam ser vigiados, rigorosa ou frouxamente,
nos seus horários de entrada e saída.
Além do relógio, existem
outros indicadores do tempo e de seu controle, como o galo. E quando o galo
canta e ele ou ela ainda não chegou? A aflição vai tomando conta e sufocando
até que haja sinais de que eles estão vivos... Nessas horas, não há hora que
passe. Elas escorrem pastosas, agonizantes.
Como a menina não
estava cumprindo o combinado, ouviu-se o chamado.
Estava na hora que
ela deveria voltar. Como reforço, a mãe foi até a cerca e a chamou. E chamou,
chamou, chamou. Nada. Quem veio atender? Outra menina, com um recadinho:
- Ela está almoçando
e não poderá ir agora pra casa!
“É muito folgada
mesmo!” - pensou a mãe. “A abusada ainda explora a colega... Quando ela chegar
nós teremos uma boa conversa!”.
- Você não ouviu eu te
chamar?
A mãe não quis saber
de conversa e exerceu o seu direito de corrigenda. Levou a mão à sua orelha.
Dela sim, da criança. Porque orelha de criança dizem ter função educativa.
Recomenda-se, no entanto, dosar a força. Corrigenda não é o mesmo que
espancamento. Pede bom senso.
- Você não tem
limite, não é?
Limite? Ela até parecia
saber do que se tratava:
- Está bem, mãe, da
próxima vez eu não demoro mais. Eu vou obedecer.
Da orelha a mãe, no
entanto, não largou até que ela entrasse na cozinha.
O choro foi breve e
logo ela voltou a brincar.
Eu que assistia a
tudo, de coração meio partido, pus-me a refletir que aquilo era tão somente um
freio, o limite necessário à educação dos filhos, que pode ser imposto ou
negociado de muitas maneiras.
Limites que ela
haveria de levar consigo pelo resto da vida, como baliza, roteiro, rumo certo.
É possível que outras
correções fossem ainda preciso, mais tarde, quem sabe até algumas surras, mas
nada que viessem a deixar as marcas do rancor, da mágoa.
Rigor de pai e mãe é
solúvel em água. Depois de algumas lágrimas tende-se a esquecer.
Os limites impostos,
estes não, são os cintos de segurança que se leva para a vida inteira.
Ah sim, a menina está
ouvindo melhor e aprendeu a voltar para casa. Passa bem e promete ser uma
criança normal. Queira Deus!
Um comentário:
Eita moço bom de texto!!!! Texto gostoso de ler, que nos prende tão espontaneamente.
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