sábado, 30 de maio de 2009

Crônicas e ensaios VI

Os andaimes e os edifícios

"...a ilusão de que somos eternos neste corpo responde por muitas tragédias." Pedro Garcia de La Vega 

Um amigo engenheiro comentou comigo algo sobre a teoria dos andaimes. Ouvira de um colega, durante a construção de um grande edifício em São Paulo, lá pelos anos cinqüenta. Eu a resumirei, lamentavelmente sem a elegância com que ela foi contada. 

Eu já conhecia a palavra andaime. O seu significado e as várias formas de utilização, sempre me chamaram a atenção. Admirei-me, porém, ao descobrir que existia empresas especializadas em locá-las; enfim um insuspeito mercado de provisórios arranjos. Sejam feitos de madeira, de tubos de aço ou de qualquer outro material, os andaimes não permanecem indefinidamente nos canteiros de obra. São colocados ali para cumprir um objetivo passageiro. Após a conclusão da obra, ele é desmontado, reaproveitado ou deslocado para outro local. 

Muito bem, mas o que dizia a teoria dos andaimes do velho engenheiro? 

Que existe na vida humana duas coisas básicas: andaimes e edifícios. Os andaimes são os nossos corpos. Os edifícios simbolizam o nosso espírito em permanente estado de construção. Assim como é difícil perceber qual será a forma de um edifício em obras, quando os andaimes estão à sua volta, da mesma maneira pouco se distingue as nossas construções interiores (há mesmo pessoas que mal conhecem a si próprias, tão preocupadas estão com os seus andaimes). Curiosamente, alguns chegam a afirmar que o edifício em si, após um certo tempo, fatalmente desaparecerá. Naturalmente eles confundem andaime e edifício. Talvez acreditem que o ser more no corpo e nele se resuma. Não é de se estranhar, pois, que ao não se distinguir corpo e alma, as pessoas dêem mais importância ao que é provisório (ao andaime), do que ao que é eterno (o edifício que está permanentemente em construção). Como conciliar, então a estranha crença das pessoas no Grande Arquiteto do Universo (ou Deus) com a idéia de que removido os andaimes (o corpo) desmorone todo o edifício? 

Eu ouvia o amigo engenheiro, que se mostrava sinceramente entusiasmado com as divagações que um simples andaime permitia, quando o alertei que estávamos chegando ao nosso destino; que ele encerrasse o seu raciocínio. E ele o fez: "Que os andaimes sejam importantes, ninguém ousará negar. E o nosso corpo-andaime o é. O que se precisa e com urgência é deslocarmos nossa visão para a obra em construção. Aqueles que tem essa noção costumam cuidar muito bem do andaime, pois terá que prestar contas do seu uso, mais tarde. Mas em nenhum momento podemos deixar de estar atento à construção da obra ou à sua reforma." 

Despedi-me do amigo e seguimos nossos rumos. Se essa teoria se tornar corrente e nos perguntarem como estamos "tocando a nossa obra", o que haveremos de responder?

Seção Requentação (Porto Velho, 28 de outubro de 1998)

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Crônicas e ensaios V

Liga-Desliga

"Nem só de pão vive o homem..." Mateus (4:4)

Dia desses eu estava a conversar algumas trivialidades com uns amigos. Comentários despretenciosos sobre certas coisas da vida, algumas engraçadas, outras curiosas. Bate papo com os amigos precisam desses elementos. Muitas vezes é a partir de uma consideração sem maior importância, que nos aprofundamos em assuntos mais sérios. No meio dos citados amigos tinha uma criança. Menina inteligente e sensível, estava ali nos ouvindo, nos espiando. Pude perceber toda essa sua atenção, quando observou, minutos depois, roda desfeita: "oh tio, por que o senhor vive olhando para o tempo?"

Uma boa pergunta. Por que vivemos olhando para o tempo? Esse olhar o tempo, não era um olhar meteorológico, como aqueles que varrem o céu a procura de indícios de sol ou chuva. Era o olhar vago, depois que se perdem em horizontes distantes. Foi o que lhe respondi, ao acrescentar que deixara o meu corpo ali e estava passeando por aí. Que era uma maneira muito barata de viajar; que dessa maneira era possível exercitar a imaginação e outras bobagens mais. Eu ri. Ela também, embora levasse o assunto muito mais a sério. Contou que um colega seu na escola é também assim: "Ele fica uns dois minutos virado para a parede, olhando não sei o quê, depois volta e acorda. Eu pergunto, então, em que ele estava pensando e ele nunca sabe..."

Não sei se é comum a todos esses estados de desligamento, desprendimento. Ou será um estado de pensamento profundo? Um amigo nosso, dado a esses vôos, tem às vezes problemas conjugais graças a estas viagens. Ao voltar à realidade, é difícil explicar à sua esposa por onde ele esteve. 

Partilhar de viva voz o que trazemos de tão longe ou profundo é, às vezes, impossível, ou muito desgastante. É como viver uma experiência inédita, inusitada e tentar descrever para os outros o que se viveu, de imediato, sem que nos deixem descansar da jornada. Faltam-nos palavras. 

A despeito dos pequenos problemas que os estados de alheamento pode nos causar, esse olhar para dentro sempre nos faz bem. Os próprios aparelhos eletrônicos estão sendo programados para trabalhar assim, em stand by, em estado de quase dormência, mas de prontidão; um simples sinal de atividade e eles se reativam. Viver alucinadamente preso aos duros acontecimentos de cada dia, pode nos levar a sobrecargas que nos causam sérios danos físicos e psicológicos. Aprender a ligar-se e desligar-se, dessa maneira, é fundamental. O resto é imaginação, fantasia e sonho. O que recomendamos também nunca se dispensar.

Seção Requentação (Porto Velho, 28 de outubro de 1998)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Crônicas e ensaios IV

Os perigos da arte

"A arte é perigosa para a imaginação e a sensibilidade" Paul Claudel 

Há sérias dúvidas se a arte ainda mereça um tal comentário, como o do Claudel, diplomata e literato francês. O poeta francês considerava essa uma vocação muito arriscada. Poucos resistiriam e acabariam numa vida frustada... Sua afirmação se baseava na vida de cão de sua própria filha Camille, que se tornara esposa do escultor Rodin e de outros artistas franceses do século XIX. 

Quem gostaria de ter um filho como Rimbaud, que aos dezoitos anos, um dos maiores poetas do seu tempo, precoce revelação, trocou literalmente a pena pelo fuzil? Seria o mesmo que tornar-se mercenário e/ou contrabandista de armas e ir lutar em uma das tantas guerras que ainda pipocam mundo afora. Foi o que ele fez, sabe lá Deus o porquê, levando consigo toda a sua poesia.

A própria Globo toma lá os seus cuidados com os jovens e velhos atores, principalmente com os primeiros. Especialistas ministram cursos de administração de carreiras, para que se evite os traumas e dramas que uma carreira bem ou mal sucedida pode acarretar. Disse mal ou bem sucedida, pois nem sempre as tragédias acontecem no ocaso ou no fracasso de uma carreira. O sucesso, por vezes, causa mais mal que o próprio fracasso. As alternâncias entre a evidência que o sucesso causa e o quase anonimato após esse mesmo sucesso, porém, parece ser a combinação mais difícil e perigosa de se administrar. 

É evidente que o artista, nas suas mais amplas variações necessita mais do que outros profissionais de equilíbrio emocional, para administrar sua vida, na breve ou longa carreira que tiver. Quanto mais efêmero e fácil o sucesso, maior deve ser esse prumo. Poucos resistem a um anonimato abrupto, depois de estar em evidência intensamente, às vezes, por tão pouco tempo... 

Outro grande perigo que vitima os artistas é o intenso e alucinado ritmo de trabalho que as produções e o mercado impõem. Não poucos se drogam para suportar as tantas imposições e pressões. 

É de se anotar também um outro fator de risco para aqueles que desejam se aventurar nesta vertiginosa vida. É o risco do sucesso instantâneo, passageiro e de qualidade duvidosa, que tem como complemento as fórmulas fáceis, com as embalagens que a mídia sabe tão bem vender. Os tantos grupos sertanejos ou de pagode são os exemplos mais cruéis da nossa indústria cultural. Primeiro por descaracterizarem o que seja sertanejo e pagode . Depois por serem, na maioria dos casos, meros joguetes das gravadoras. Por fim, é preciso considerar ainda o produto em si. Totalmente descartável. 

A super exposição a que estão sujeitos os homens que se tornam célebres e públicos, é também um grande mal. Invasão total de privacidade e transformação da pessoa em personagem, são alguns dos tantos efeitos colaterais desse gênero de sucesso. Que o diga a Xuxa. Ela sucumbiu ao peso da fama e segundo as análises mais apuradas ela deixou de ser pessoa, para tornar-se uma grife, uma marca, uma sombra... A gravadora do Skank, na contramão dessas tendências, está dosando a exposição do grupo mineiro na mídia, justamente para evitar o desgaste e as oscilações de mercado e público, como a que vitimou o RPM. Desde o crepúsculo do grupo que o Paulo Ricardo tenta, por todas as vias, voltar às estradas largas do sucesso...

Parece-nos que é necessário uma certa dosagem de raciocínio e bom senso nessas questões. E para se evitar as desilusões que acometem todos aqueles sonham voar mais alto que as suas asas permitem, é conveniente ter os pés no chão. E reservar uns longos anos para o amadurecimento da própria obra ou estilo. O tempo é sempre um bom conselheiro. Portanto, andemos devagar com o andor... 

Seção Requentação (Porto Velho, 28 de outubro de 1998)

domingo, 24 de maio de 2009

Um livro para pais e mães especiais...

Tenho um filho enquadrado como sendo portador de  TGD (transtorno geral do desenvolvimento) ou espectro autista. 

Já aprendemos a lidar com as tantas situações que os pais de filhos não-normais ou portadores de transtornos, síndromes, distúrbios enfrentam (sobram nomenclaturas e faltam "diagnósticos fechados" nesta área!).

Andréia Lígia é parceira de link de um outro blog nosso (www.conhecerparaprevenir.blogspot.com) e aí recebemos o convite de somarmos forças para divulgar este seu filho, digo, livro aí abaixo. 

Doutor, meu filho é normal?

Andréia Lígia V. Correia / Alana Cláudia Martins Mendes / Katherinne Rozy V. Gonzaga - 104 páginas - 1ª edição - 2009

O livro tenta quebrar a tão perigosa noção de que as nossas crianças não adoecem de transtornos psiquiátricos. Ele nos guiará a uma viagem sobre o comportamento infantil, estabelecendo limites para o normal e patológico, e quando procurar ajuda profissional. Revela algumas particularidades das relações familiares nesta faixa etária, alguns comportamentos que nem sempre são graves, como furto infantil, relação precária entre pais e filhos e a importância da família na saúde mental do pequeno. Transtornos mentais infantis são considerados com temas como Depressão, Autismo, Retardo Mental, Transtornos de ansiedade infantis, Fobia escolar, Pânico, Enurese e Encoprese infantis, e o famoso TDAH, dentre outros quadros, investigando causas, quadro clínico, modo de identificação e tratamento. Por fim, esclarecemos como ocorre o tratamento com crianças, desde o tratamento medicamentoso a algumas opções psicoterápicas, como a psicanálise e a ludoterapia infantil e abordagem psicoterápica nas escolas. O objetivo é, de modo simples, rápido, através de textos e casos clínicos, fazer com que os profissionais tenham um parâmetro de avaliação sobre os comportamentos infantis, quer sejam patológicos ou não.

Convite feito!

Crônicas e ensaios III

Que falta fazem as mães

"As mães não deveriam morrer nunca...Carlos Drummond de Andrade

Em 'Recordações da mamãe', simples papel manuscrito guardado na carteira, Drummond carregou por toda a vida os três pedidos feitos pela mãe: 

Não guardes ódio de ninguém;

Compadece-te dos pobres;

Cala os defeitos dos outros. 

Ele parece ter cumprido os desejos da mãe. Não consta de sua biografia que tenha tido inimigos. Se foi generoso com os pobres, não o sabemos. E se o fora, também, não teria dito, pois não era dado às indiscrições. Quanto aos defeitos dos outros, parece não ter tido tempo para o sinistro ofício de divulgá-los. 

Sua mãe, que mereceu dele um dos mais belos poemas sobre o tema, marcou-lhe por toda a vida. Ela alimentou-o com aquilo que os ladrões não roubam, nem roem as traças. Lições ternas e simples que fez questão de levar consigo pela vida inteira, manuscritas (a pequena síntese acima) e aquelas outras, impressas direto no coração. 

Nos seus primeiros escritos, o mineiro de Itabira escreveu que um anjo, desses que habitam o limbo, o teria inspirado e dito: 'Vai, Carlos, ser gauche na vida'. Numa tradução livre: "Vai, Carlos, não importa se pelas vias tortas, vá ser poeta na vida!" Ele foi. Mas desconfio que um outro anjo guiou-o. 

Esse anjo tem também o dom de permanecer nas sombras. Não as sombras do anjo torto, que é dado a estripulias; mas as sombras generosas que carrega consigo e que oferece, como um colo amigo, a quem necessite. 

Colo de mãe é assim: uma sombra, nos bravios ou longos estios da vida. Ela, mesmo à distância, nos acalenta e reconforta. Discreta e delicadamente nos aponta rumos, que nem suspeitamos existir. Quem tem olhos no coração vislumbra esses horizontes distantes. Por isso as mães quase sempre conseguem nos fazer distinguir as soluções para os problemas mais intricados. Essas indicações não nascem de meros raciocínios; nascem sim de um processo onde se misturam a intuição e todos os outros insuspeitados sentidos. Como o da premonição. Qual a mãe não é dotada desse extra sentido?

Por que estamos falando sobre as mães? Por um motivo simples: é que elas nunca fizeram tanta falta, como agora. Este último refúgio seguro, às vezes nos dá a impressão de estar em extinção. 

Devíamos fazer uma campanha para que se preservem as mães. Ou, de modo prático, que ajudemos a fazer nascer novas mães (e pais) mais conscientes do seu papel na formação integral dos filhos. Como filhos tornam-se pais, com a multiplicação das mães e pais responsáveis, teríamos em breve um mundo muito melhor, tão desejado por tantos. Não custa nada sonhar!

Seção Requentação (Porto Velho, 21 de outubro de 1998).