segunda-feira, 30 de março de 2015

Filho de quê?!

- É duro na queda, meio bruto. Ele não nega a raça, nem o berço. É filho do maior beque que o time da nossa cidade já teve. Como diz um compadre meu, um mineiro apaixonado por futebol, fi di béqui é fi di béqui... Estes meninos parecem que já nascem com trava no solado do pé!

Eu custei a entender o sentido daquela conversa... Eu era estagiário de Administração, lá em Sertãozinho, e quem fazia este comentário era uma lenda vida, uma autoridade na fábrica. Sabia tudo das coisas práticas, além de ter a sabedoria dos simples e uma boa conversa. Seu Estevão!

E para destrinchar o rolo que virou, para mim, aquela conversa? Escute só!

Os interlocutores do seu Estevão, amantes da bola, pegaram firme no atalho aberto por ele.

Seguiram falando dos jogadores de defesa, heroicos, de todas as épocas. Comecei até a anotar alguns nomes: Pinheiro, do Fluminense; Luis Pereira, do Palmeiras; Mauro Galvão, do Vasco. Até os estrangeiros foram citados: Gamarra, do Paraguai e Darío Pereyra, do São Paulo.

- Seu Estevão, o senhor estava falando era do beque central, aquele jogador da defesa?

- Sim, meu filho. Você gosta de bater bola?

- Até gosto, mas sou perna-de-pau! Só jogo no gol.

- Então, vai entrar pro nosso time. Aqui a gente aproveita todo mundo!

- Eu só não entendo é a diferença do beque central para o quarto-zagueiro. O senhor sabe?

- Ô, meu filho, fui treinador muito tempo. Categoria de base. O beque central é quem dá o primeiro combate. É um jogador de pegada, tem que ser firme, mas sem dar botinada! Já o quarto-zagueiro é o que fica mais atrás, para o segundo combate, para o rebote. Tem que ser mais técnico.

- Saber matar no peito?!

Riram de mim. Olharam uns para os outros e perceberam que eu era do tipo goleiro-espectador ocasional...

- Matar no peito, tocar de primeira, cabecear de olhos abertos e dar chutão, quando necessário!

- Seu Estevão, eu perdi o começo desta conversa. Sobre o que vocês conversavam mesmo?!

- Ah, sim, era sobre o novo supervisor. É um moço boa praça, que começou trabalhar esta semana. É formado! Ele fez uma preleção...

- Preleção?!

- Ah, desculpa, quem faz preleção é técnico em dia de jogo! Ele fez uma pequena palestra e nos motivou a agir como ele, como um filho de beque!

- Como assim?!

- Ora, o pai dele jogou no meu time e foi o melhor beque central desta cidade. Chegou a ser contratado pelo Botafogo, de Ribeirão Preto, no tempo do Sócrates. Mas estourou o menisco e aí adeus carreira!

- Puxa vida! Sim, mas o que faz um "filho de beque"?

- Imita o pai, ora! Jogo para o time, dá o primeiro combate! Corre atrás!

- Entendi...

Por respeito a tudo o que representava o seu Estevão calei-me e fui conversar com o supervisor, que eu não conhecia ainda (havia pegado uma dengue e fiquei afastado).

- Senhor, posso entrar?

- Nada de senhor aqui! Pode me chamar de Ricardo. Você é o nosso estagiário no Departamento de Material, não é?

- Sim, prazer, Ricardo. Gostaria de ter uma conversa em particular com você.

- Pode ser aqui?

- Acho melhor não!

Fomos para uma sala de reuniões e ele demonstrou preocupação.

- Fica tranquilo, pois não é nada sério, acho...

- Pode falar abertamente, é a política da empresa, você sabe!

- Sei, sim. Vou direto ao assunto.

Narrei, em detalhes, a conversa tida no refeitório, sobre o futebol e a pequena palestra dele...

Ele riu de quase perder o fôlego. O chefe de seu departamento não se aguentou e veio saber da novidade. Esborrachou-se também de rir! Mas o alertou:

- Agora, Ricardo, pode esquecer o seu inglês de vez!! Nada de feedback por aqui... Nunca mais!

- Pode deixar. Vamos ter que aproveitar esta situação e “virar o jogo”!

Resultado: a conversa sobre o filho de beque correu a fábrica e chegou ao ouvido dos donos.

Seu Estevão ganhou aumento para treinar o time dos filhos dos funcionários, antes do horário de expediente.

As equipes, com estas e outras novidades que surgiram, aumentaram a produtividade, graças ao reforço do futebol.

Inglês só ficou permitido durante as aulas e nas preleções do seu Estevão, que passou a ser chamado de “professor”.

Ele colocou os meninos para pesquisar sobre a origem do futebol e exigia que o jogo fosse bilíngue.

O escanteio reencontrou o corner e o pênalti reconquistou grafia e entonação britânica: penalty

- Vá que algum desses meus meninos acabe na Europa. Vai saber falar inglês, sim!



domingo, 29 de março de 2015

O lado sombra

A professora do meu filho dizia que toda criança, mesmo as menores, era capaz de entender "muito além do que a gente pode imaginar".Que nós, os pais, déssemos apoio em casa, sem "quebrar a onda" delas. 

Era assim em sala de aula, naquela escola. Toda conversa, mesmo as mais atravessadas, seriam sempre aproveitadas...

"Então tá, né!".Ouvi esta frase irônica de alguns pais, na saída da reunião.

Meses depois me pus a apreciar o "método de livre associação" da professora, que começava a fazer efeito:

- Luz, cama, ação!!

- Epa! Não é câmera, Stênio?

- Não, a cama nesta frase foi ideia minha. A professora pediu que a gente inventasse uma frase. Podia ser parecida com outra. Inventei!

- Parece que estas três coisas não combinam...

- É do meu filme, mãe!

- Mas não era uma frase?

- Era, mas virou filme. Filme de ação.

- Ahn?! Com cama e tudo?

- Mãe, os verbos de ação que eu escolhi, na aula, foram: sonhar, dormir e imaginar.

- Mas desde quando dormir é verbo de ação?

- Claro que é! Foi a senhora mesmo quem disse isso.

- Eu? Quando?

- A senhora comentou que nem dormindo eu sossego!

- Era só um modo de dizer, uma expressão.

- Meus sonhos são de ação mesmo. Também de suspense, de aventura, às vezes de terror... Tem também um pouco de comédia.

- Então todo o enredo do seu filme acontece no mundo dos sonhos?

- Não, mãe, não é tão simples assim! A cama é apenas um portal.

- Você deita, apaga a luz, atravessa o portal e entra em ação?!

- Nada disso! Seria muito previsível. Na verdade, a cama é onde os personagens da mitologia grega desembarcarão para a aventura.

- É cada ideia!!

- Mãe, a senhora não está ajudando! Vou precisar de vocês. Tenho que conseguir uma cabeça de touro, com chifres bem grandes, para o meu filme. O primeiro personagem que aparecerá será o Minotauro. Tem que ser realista e gravado em casa. O pai...

- Seu pai?! Pode ir sonhando. Machista como ele é, não faria um papel desses de maneira alguma!

- Não?!

- Não!

- Mas o Minotauro...

- Tem chifres.

- E o que tem o chifre?

- É um símbolo que assombra muitos homens.

- Ah, mãe, você não quer dizer que o pai tem medo de ser traído, tem?

- Então você entende?

- Você nunca se apaixonaria por outro homem, mãe, eu sei!

- Nem pensar!! Um só basta, dá trabalho. E, além disso...

- Você gosta mesmo do meu pai, não é, mãe?! Ele não tem feito por onde merecer, mas você faz a sua parte. Eu sei!

- Hein?! Que história é essa, filho? Este assunto...

- Este assunto também me interessa! Vocês são meus pais, lembra? E eu posso ajudar, como tenho tentado. Ontem mesmo conversei com o pai...

- O quê?! Conversou o quê?!

- Sobre as três grandes paixões dos homens.

- Que conversa foi essa?

- Ouvi na escola... Os homens costumam gostar muito de três coisas: amigos, futebol e cerveja.

- Ahn?! Foi a sua professora quem disse isso?!

- Não, mãe, foi um homem, um escritor que visitou nossa turma. Acho que isso acabou saindo, meio sem querer...

- Ah, sim! O livro dele então era sobre outro assunto.

- Era sobre as nossas escolhas, sobre o destino. Acabamos falando de moda e das pessoas que seguem as ideias de outras pessoas sem perceber!

- Meu Deus, preciso voltar para a escola! Me conta mais...

- Ele disse que parte dos homens adora cumprir ordens. Eles não pensam, não tem autonomia... Tipo os soldados na guerra. Por isso, eles conseguem matar tantas pessoas. Mas depois piram o cabeção. E aí matam mais gente e se matam. Não nascemos para certas coisas terminadas em “ança”, mãe, o escritor disse!

- Que coisas são essas?

- Matança, lambança e vingança...

- Rimou, mas é esquisito... Sim, mas e a conversa com o seu pai, o que você disse?

- Eu falei que ele parecia o personagem de uma história que criamos em sala, ao vivo, na visita do autor do livro. Nós escolhemos três palavras no dicionário, ao acaso. E ele provou que nós éramos bons contadores de histórias.

- Me arrepio só de pensar nas palavras que saíram...

- Foi uma fácil, uma mais ou menos e uma difícil. Ovelha, propício e mequetrefe.

- E o seu pai?!

- Mãe, mequetrefe é o mesmo que enxerido, inútil, patife. E tem muita gente assim que comanda pessoas, que influencia, sabe?!

- Não sei de mais nada!! Eu já disse que vou voltar para a escola e juro que vou! Continua.

- Brincamos, no final, de trava-língua e de fazer rima. Alguém lembrou que mequetrefe rimava com chefe. Lembramos também de uma brincadeira que a professora tinha feito em sala: “Cuidado com as ordens do chefe!”.

- Esta professora...

- Ensina a gente a pensar, só isso, mãe!

- Continua que eu estou curiosa!!

- Mãe, o pai se deixa levar por pessoas do tipo “mequetrefe”, inclusive aquele que é o seu “chefe”, um cara totalmente sem noção! Qualquer criança com um pouco de juízo na cabeça sabe fazer escolhas mais sensatas...

- Escolhas mais sensatas! Meu filho, sua professora está roubando a sua infância. Você está se tornando adulto muito cedo, não acha?

- Não acho, não! E para a senhora ficar tranquila, a gente mais brinca em sala de aula, do que estuda, principalmente aquelas coisas chatas dos livros, sabe?

- Verdade?

- Juro por tudo o que é sagrado pra mim e pra você!

- Como assim?! O seu sagrado agora é diferente do meu?

 - Mãe, eu gosto de outras coisas também! Até do Hades eu sou fã. O inferno mitológico dos antigos era maneiro, mãe! Olha aqui a minha camiseta: Darth Wader. Todos nós temos um lado sombra... Ignorar isso pode barrar a luz que trazemos dentro de nós.

- Não vai dizer que a professora...

- Não foi ela! A escolha foi minha. Foi na Semana do Cinema. A senhora não lembra que foram seis dias, até no sábado? Eu escolhi Star Wars. Debatemos muito! Foi a psicóloga da escola que falou sobre nossa sombra. Ganhei até uma figurinha do ídolo dela, o Jung (escreve com jota, mas se pronuncia como i). J - u - n - g.

- Bem e o seu pai, o que disse?

- Vai mudar de emprego e de amigos.

- Eu bem que achei ele meio esquisito, falando umas coisas sem sentido...

- Ah, mãe, ganhei a aposta que fiz com ele. Ele não acertou nenhuma daquelas três palavras (amigo, futebol e cerveja). Eu sabia que o lado sombra dele ia ser mais forte, eu sabia!

- Filho!!

- Mãe, desculpe, mas tenho que colocar em prática o que estou aprendendo na escola! Não é assim que tem que ser?

- Que palavras você achou que ele iria dizer?

- Errei uma só. Ele se superou, mãe! Disse que o que mais importava era Deus, a esposa (“sua mãe”, ele falou!) e a família. Eu achava que ia ser Deus, a esposa e os filhos...

- Queria estar lá para ver a cara de espanto dele...

- De espanto ou de choro?

- Ele chorou?

- Homens não choram, mãe! São os ciscos...

- Sim, são os ciscos...