sábado, 2 de julho de 2011

surto poético intermitente (ix)

Espelho

Se o outro é meu espelho e constrangido me sinto
por ele revelar tão diretamente minhas torpezas
não há de ser certamente contra ele - a imagem
a quem devo combater, inutilmente

Doí-me, ó vaidade das vaidades, cá no umbigo!,
por isso os tantos tremores e calafrios a me percorrer
pois é lá nas entranhas, bem mais fundo
que sinto tudo me revolver

Devo contar tudo, cena a cena, multifocalmente:

...eu era um simples observador da vida
levando uma vida calma, vivendo tranquilamente
até que me deparo com uma imagem transversa,
ou atravessada, às avessas, a me refletir:

Ele era tudo o que eu desejava ser, é verdade...
do que me corroía como medonho ócio
ele fazia, para os outros, prazer e negócio

Parecia que ria de mim, o desalmado,
pois tudo em sua vida se encaixava:
a irritante disciplina do seu fazer constante
a invejada e boa alegria que irradiava
os gestos espontâneos, amigos, que transcendia...

Descobri-me, então, nesse jogo de espelhos
em que a imagem dele, invertida, me parecia convite
desafio a me torturar, por me mostrar tal como eu era:
escravo de tantos vacilos, vivendo teimosamente
desnecessárias agruras e descartáveis prazeres

- Um dia a gente desperta! – eis o que dele ouvi
não com referência a mim, pois que era sábio
e ainda a afagar meu ego, falava das minhas virtudes
como quem lança, discreto, semente boa e resistente
em meio aos meus espinhos naquela difícil estação
quando de Deus nem mesmo eu era temente.

Mas o tempo ecoa, como onda que prossegue
vale adentro, montanha acima, sem cessar
e escoando as horas, eis que do solo da alma
como a brotar de um poço profundo
começa a minar a água viva que então pressinto
já existir em mim, esperando caminho certo
para transitar e se espraiar, em torno e além...

Hoje desse espelho ainda guardo fragmentos
imagens que permanecem vivas, aos recortes
e sinto que por vezes me confundo com o que
vejo refletido, em duplicata.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

surto poético intermitente (viii)

Tua imagem, tua paisagem, teu dia

O tempo só me deixa ver nos teus olhos os fragmentos
certos traços do teu rosto, do teu corpo esguio...

E se busco compor uma paisagem, um cenário
com os recortes das lembranças que se acumularam
não te vejo senão nos cômodos da casa da mangueira ao fundo
e mais ao fundo ainda, um grande valão, assustador e que me atraía
e dali mesmo, da cozinha, da sala, falavas de outros mundos:
o mundo dos mistérios das incontáveis cavernas, da pedra que crescia
da fé que se multiplicava nos festejos todo ano, com tanta gente que vinha
para as justas homenagens à Nossa Senhora...

Para mais longe ainda ias, nas viagens já feitas e sepultadas
de outras cidades, para onde se deslocara e que de lá guardara:
pedras, muita pedraria – falsos brilhantes, vida vazia.
mas destas viagens trouxeste na bagagem um raro pergaminho,
um passaporte para o mundo de vasto conhecimento
que te permitiria te transformar em fada, estrela guia.

Das letras me ensinaste os mistérios, na rua Antonina.
em meio às minhas dores, restaurado eu conseguia
vislumbrar nos livros um novo rumo, uma promessa de novo dia.

E agora que escrevo e posso te incluir nos meus roteiros
nos contos, nas histórias infantis, nos poemas
busco te transformar em poesia.

Nesses dias em que se vão comemorar
de todas as mães o seu dia
fica aqui o meu desejo:
dedicar-te toda minha alegria!!

Para a tia Dagmar, que me alfabetizou, com todo o meu reconhecimento e gratidão.

crônicas ou quase isso (i)

O jardineiro e a morte

Contam que durante a Segunda Grande Guerra, em um dos ataques alemães à capital inglesa, um filósofo refugiou-se em sua biblioteca, situada no porão, junto com seu jardineiro.
O homem simples, de mãos calejadas, buscou na prateleira algumas revistas e pôs-se calmamente a folhear e admirar as suas figuras, pois que era semi-analfabeto. As bombas voadoras eram despejadas sucessivamente, causando pânico em torno.
O filósofo andava de um lado para o outro, inquieto. E em certo instante não conteve a própria curiosidade e perguntou ao jardineiro:
- O que você está fazendo aí, pobre homem, a folhear estas revistas? Não percebes que estamos à beira da morte?
A resposta do jardineiro foi precisa:
- Estou a me preparar para a grande viagem.
E antes que o filósofo algo mais perguntasse, pois que a resposta do jardineiro o deixara perplexo, este complementou:
- Aprendi que se deve manter a fé e a coragem em qualquer circunstância da vida. E se possível, devemos morrer com um mínimo de dignidade, segundo nossas próprias convicções. Eu estou convicto de que a morte é um mero túnel, uma passagem para outra vida. Não vejo, pois, sentido algum em desesperar-me. De duas, uma: ou morreremos ou nos salvaremos; como nas duas alternativas continuarei vivo, segundo minha concepção, não há porque me preocupar.
Antes que o filósofo descansasse o seu cachimbo na mesa, sinal de que retomaria a palavra, ele arrematou:
- O melhor mesmo a fazer é me ocupar com algo que me proporcione prazer. Aliás, veja que belas flores! - disse apontando para uma das páginas da revista.
Ambos se salvaram. O filósofo, agora reticente quanto às suas antigas convicções quanto à vida, seus mistérios e desafios, nunca mais seria o mesmo...

quinta-feira, 30 de junho de 2011

surto poético intermitente (vii)

Chegou carta!

"- Quando as novas contas chegarem
nem quero estar aqui:
- melhor estar mesmo por aí
vivendo a vida sem pressa
inclusive de voltar pra casa
pois preciso garantir não só
o pão de cada dia
mas principalmente aquele
outro pão - o da alegria
(a patroa entrou, agora, numas de deprê!)

preciso colher qualquer alegria:

- a do cachorro que ao saltar para
comer comida fria, guardada,
dispensada, do outro dia
acaba por encontrar boa companhia
para partilhar a fina iguaria

- a do idoso que coleciona sombras,
ao insistir em acompanhar por cima do muro
a projeção das figuras na parede
que desfilam morro abaixo ou acima...
 
- a da criança que faz ponte improvisada
no filete d'água do esgoto
para fazer passar seu carrinho
feito das artes de sua própria e
improvisada carpintaria..."

Ele chega e descobre que o banco lhe enviou aviso
que o PIS está na conta

Nem precisaria mais das outras alegrias
Imaginadas e já colhidas,
mas assim mesmo comenta
aos poucos os acontecidos do dia
- para espantar, esconjurar a deprê
que nesse instante já debandou...
(o sorriso da patroa se abriu como flor
dessas, que ao sol, de súbito, da vida traz notícia)

Sob inspiração do Fabrício Carpinejar e do Mário Rui
16/julho/2008 |relido e refeito em 23 jan e 29 mar 2011

Histórias inacabadas (v)

Hedzam

capítulo 1

Nasceu em Paris, em 1889, em meio a um rigoroso inverno, o primeiro filho do casal Joachim e Érika, judeus franco-alemães.
Deram-lhe ao menino o nome de Hedzam, em homenagem ao bisavô materno e seu tio Jeremiah, irmão de seu pai, dado a sondar o futuro, vaticinou: “este menino nasceu para percorrer todos os quadrantes do planeta”.
Seu pai era joalheiro, como seu avô e nasceu em terras alemãs, na capital do antigo reino da Prússia - Berlim. A mãe, também descendentes dos hebreus, veio ao mundo numa das belas cidades européias à sua época - Viena, na Áustria.
Joachim era um ourives que sabia dar conta de seu ofício, mas sem brilho, limitado. Em contrapartida, Érika era dotada de mãos que desconhecia limites e, portanto, ninguém conseguia descrever, sem perplexidade, suas múltiplas competências artísticas.
Nas cartas que enviava ao seu irmão gêmeo, que ficara na Prússia, Joachim costumava comentar sobre as artes e engenhos da esposa:

Hans, tenho me perdido em indagações sem fim acerca dos mistérios que permanentemente me assombram: Érika e suas mãos que desafiam qualquer explicação. De onde lhe vem a habilidade ímpar que lhe permite moldar o barro, recortar o papel, esculpir a massa do trigo? Vivo escondendo a autoria dos seus pequenos inventos, para não despertar a inveja alheia. Imagine você que um dia desses...

Ela, na sua simplicidade, se limitava a comentar:
- Que mal há em deixar que minhas mãos traduzam o que imagino, penso e sinto?
Hedzam cresceu assim, neste pequeno grande mundo que era a sua casa, em meio às esculturas em miniatura da mãe e os mapas e globos tão ao gosto do pai, que sonhava viajar, indicando amplidões a se conquistar, sem contar o telescópio, instalado no sótão, que possibilitava passeios pela vastidão dos céus...

capítulo 2

Quem mais influenciaria Hedzam ao longo de sua jornada? 
Penso ser Érika, sua mãe. Outros, que estudarão, um dia, seus traços de personalidade poderão, ainda, detectar a presença firme do seu pai, do seu tio Hans e do seu avô materno. Como se vê, os homens poderiam ter conduzido seus passos rumo à aventura.
Mas, na verdade, foi a mãe de Érika, sua avó materna, quem lhe transferiu, pelos laços da afinidade, a mala e a bússola, a tenda e as panelas... Sofia era uma cigana que nascera na Bulgária, criara-se na Hungria até a adolescência e depois de decidir “tomar rumo próprio” casou-se com seu avô Dimitrius, um judeu grego, em algum ponto do rio Danúbio, possivelmente em uma pacata cidadezinha da Dalmácia, a terra dos dóceis cães alvinegros.
Hedzam, desde cedo, conviveria com estes seus avós maternos, em Viena. Passara lá boas temporadas de férias escolares, quando já se encerrava o século dezenove e o vinte se anunciava com suas promessas de progresso e bem-estar para todos...
Seus avós paternos, nascidos na Alemanha, moravam em Leipzig e se diziam herdeiros diretos da arte musical de Bach. Eram construtores de órgãos e músicos amadores. Sua avó Marlene e seu faro infalível para negócios e seu avô Jacob, homem das mãos firmes e ouvidos afinados, costuma visitá-los em Paris, quase sempre no outono, marcando Hedzam o bastante, contagiando-o com habilidades e gostos que ele iria, ao longo da vida, tomar como seus.
Mas foi Érika quem lhe apresentou, nos cenários que montava na sala de jantar, todos os continentes, seus povos, fauna e flora. Cenários que lhe consumiam semanas de trabalho meticuloso e exaustivo. Como aquele que incluía a erupção de um vulcão, no sul da Europa, próximo de Nápoles...
Já estava a me esquecer do seu tio Oto, o filho mais velho de Jacob, que lutara na guerra franco-prussiana, tendo ele próprio nascido no palco deste conflito, em algum ponto entre a Polônia e a Áustria, no tempo em que as fronteiras destes países se moviam para acomodar o difícil parto da nação alemã. Com este tio, que se tornara voluntário da Cruz Vermelha por décadas, escoteiro e adepto do vegetarianismo, tivera lições de como lidar pacificamente com os conflitos armados.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

surto poético intermitente (vi)

Inauguração

Hoje é sempre a primeira vez
se nossos olhos, na busca
do que não se revela fácil,
permitem sondagens que vão além
do que se vê por aí
(muitos insistem em ver
somente o que se vê toda dia...)

Ora, o rio de águas turvas
que se fez distante miragem
mas que está a alguns passos daqui

Ou o amigo com quem
tecemos tantos momentos
de encantamento
e que nos aguarda, ansioso

Ou ainda os fragmentos de sensações
do que vivemos ao longo dos dias

Tudo isso precisa ser renascido
como na primeira vez...

Passar em revista
fatos, pessoas e impressões
apenas para confirmar:
- tudo ainda está como deve estar?
é próprio da rotina
dos homens de rotina,
de retina viciada...

Todo dia é dia de inauguração:
aquele pedaço de sol poente
ou o retalho de céu
com todos os cambiantes do azul
merece novo recorte...

A tesoura pode ser a mesma,
mas a festa há de ser sempre outra.

Ao Alonso Alvarez,
por efeito de contágio poético |relido e refeito em 15 jul 2008 e em 23 jan 2011

Histórias inacabadas (iv)

O labirinto 
  
Num certo dia de aula lá estava a profª Carmem às voltas com as correções dos exercícios de matemática da 2ª série. Os meninos, seus alunos e alunas, estavam no recreio.

Um deles, porém, permaneceu em sala. Cabisbaixo, com o queixo entre as mãos, observava lá do fundo a professora. Ela nem mesmo notara a sua presença, tão em silêncio este estava.

Não demorou muito, porém, e ela sentiu acionar aquele alarme feminino – uma espécie de radar especial que as mulheres desenvolveram para a luta pela sobrevivência (contra os homens, inclusive!). O radar indicava que olhares estranhos se deslocavam em sua direção... Quando levantou os olhos, tomou um susto!

Não imaginou que o Fernando estivera todo aquele tempo ali a observá-la. E com um olhar que denunciava o que ela apenas ouvira falar de meninos e meninas das séries mais adiantadas – um olhar apaixonado, entrecortado de pequenos suspiros e alimentado possivelmente pelas mais ingênuas fantasias... Pelo menos foi no que ela desejou acreditar!

O que passaria por aquela cabecinha, indagou Carmem. “Sabe lá Deus”, ela mesma respondeu... “Mas por que não perguntar?”

E foi o que fez. Delicadamente, com todos os cuidados que o caso exigia.

– Fernando, diga-me por que está aqui e não lá fora, meu filho!?

Este “meu filho” fora dito de propósito. E o menino não titubeou:

– Professora, não vou mentir para a senhora. Estou aqui para admirá-la.

“Como?” pensou Carmem, estonteada. Respirou fundo e preparou-se para uma longa conversa...

– Mas desde quando eu sou digna de admiração, Fernando?

– Ah, professora, desde que eu te conheci!!

– Ah, sim!! – foi o que conseguiu responder Carmem. E pensou com os seus botões: “Estou numa enrascada...”

– ... então não deve fazer muito tempo–, emendou a professora.

– Faz sim!! Eu sempre fui seu vizinho. A senhora não se lembra da minha mãe?!

– Sua mãe, sua mãe...

Carmem procurava ganhar tempo, para vasculhar a memória, para encontrar uma saída e sair do labirinto em que se metia, cada vez mais fundo.

– É, minha mãe, a Dirce, a sua cabeleireira!!

– Então você é filho da Dirce, Deus meu!! E você nunca me contou nada! Por que manteve segredo todo este tempo, meu filho? A Dirce é o que a gente pode chamar de amiga. Quando vou ao salão conversamos tanto...

– E é por isso que eu sei tudo da senhora!!

“Ah, meu Santo Antônio!! Que diacho esta mãe andou falando de mim?”, perguntou Carmem a si mesma, já aflita. E indagou do menino:

– O que, por exemplo...?

– Nenhum segredo, não, professora!

– Agora eu quero saber! Fiquei curiosa.

Curiosa, preocupada, ansiosa. Tudo isto junto. Carmem, de olho no relógio, sabia que o sinal iria tocar em poucos minutos. Teriam que adiar a conversa para outra ocasião.

Assim aconteceu. Quando Fernando ameaçou contar o que sabia, tocou a sineta.

Suspirando, Carmem, julgou ter sido salva pelo gongo. Com a aula retomada danou a buscar uma solução para a delicada situação.

Decidiu, depois de algumas explicações sobre as operações de subtração, contar uma história para a turma. Desta forma, acreditava encontrar uma saída para desembaraçar-se das tramas em que se via envolvida.

Tomou o giz e escreveu no quadro três palavras-chave para guiá-la no enredo da história que criaria de improviso, como sempre fazia.

As palavras era um bom retrato do seu estado de espírito: labirinto, floresta, medo. Antes de começar a narrativa ordenou:

– Consultem o dicionário para saberem com exatidão o significado destas palavras. Eu vou à diretoria e volto logo. O Fernando será o monitor do dia.

“Preciso mantê-lo bem ocupado”, pensou consigo.

Foi para fora da sala, a fim de respirar, de concatenar as idéias (uma das suas frases favoritas e muito apropriada para a situação).

Na diretoria, a sós, deixou-se afundar na macia poltrona que existia num dos cantos. Durante alguns minutos fechou os olhos e procurou descansar. Em vão... O olhar implacável de Fernando a perseguia.

Enfim, levantou-se e decidiu voltar para a sala de aula, contar logo a história, para ver se encontrava meio de desembaraçar-se, de sair daquela agonia...

Na volta à sala de aula, Fernando fez o relato breve dos ocorridos na sua ausência, nada de grave tendo ocorrido.

Carmem começou, então, a história:

No seringal do seu Walmar existia uma escola. O professor era seu Geraldo, bom moço solteiro, que não se casou para cuidar da mãe, velhinha e doente. Sua mãezinha se foi, ele ficou – e o seu tempo passou. Dizia não ter mais jeito para cuidar dessas coisas de namorar, noivar, casar – nem mesmo tempo tinha, pois os alunos tomavam todas suas horas de descanso.
Na verdade, mesmo que quisesse, este professor só conseguiria candidata se andasse uns dois dias pela mata para chegar a outro seringal, onde poderia encontrar moças em tempo de casar - quase sempre por volta dos quinze anos.
Mal sabia Geraldo que uma menina de sua sala estava se encantando por ele...
Luzia, onze anos, não lhe desgrudava os olhos.
Suspirava, e sonhava, e se deixava ficar lá no seu canto, no fundo da sala, a imaginar a casa que ela desejava ter: com um grande quintal, bem elevada do chão para não entrar bicho; muito limpa; com cortina em todas as janelas e uns quadros na parede, além de uma folhinha bem bonita para marcar os dias que haveriam de passar sem pressa nenhuma...
Na hora do almoço - continuava ela a sonhar - ele chegaria da escola, cansado e com fome. A comida já estaria na mesa, quentinha, lhe esperando... Quando chegassem os filhos os dois ficariam brincando com as crianças na espaçosa sala ou as levariam para banhar-se no igarapé.
Assim se ocupava Luzia, a sonhar casada com o próprio professor, que nem de longe suspeitava o que ia pela imaginação solta da menina, até que...

terça-feira, 28 de junho de 2011

saindo do forno (i)

Um mundo diverso, digno de versos

Disse alguém: se todos entendessem
que o mundo é, de fato, diverso
a negação deste estado de coisa, natural
não se daria; não seria, pois, adverso...

Haveria, portanto, espaço de convivência
para a confrontação de todas as ideias
dessas em que costumamos nos digladiar:
- a frente duelando com o verso
e se fazendo o avesso, não o outro lado,
portanto afim, amigo, não algo afastado...

Misterioso e sempre digno de verso 
nos parece o outro lado da lua,
ou, para os antigos o lado A e B do disco
ou ainda o outro lado daquela rua...

Mas há de surgir, na geração de agora
dessa gente que abomina separação
cheio de traumas, no próprio ninho
...aos aparentes opostos, a conciliação.

Em amargas experiências eles vem aprendendo
que diante do confronto, quando há capricho
mania, desejo de predomínio, retenção
não se deve alimentar o homem-bicho
mas ampliar-lhe o peito, o coração
pois nele há de caber o mundo inteiro
da luz das estrelas ao pó do chão
sendo possível fazer de adversário, companheiro
que há de ser aceito, sem restrição.

:: após a leitura (e sob a inspiração) de A nova biblioteca de Alexandria: uma fênix que renasce das cinzas, artigo do prof. Jacir J. Venturi, de Curitiba. 

Histórias inacabadas (iii)

O segredo dos Macuas

     Sabe quando nos invade uma doce nostalgia e desejamos voltar no tempo?
     Como se estivesse diante de um mapa, gostaria também de me deslocar em alguns poucos segundos, rumo ao norte, até alcançar o território Macua.
    E o que me despertou ainda mais a vontade de rever o meu povo?
  O doce-amargo ofício docente, de ser professora de língua portuguesa em um bairro de migrantes pobres em Maputo... O que me faz, a todo instante, me situar, como se eu necessitasse de mais chão para os pés, que estão cá pousados, mas com a alma buscando, a todo instante minha terra, pois hei de ter deixado lá fincada as minhas raízes.  
     Para não me esquecer disso tudo, estou a mostrar aos alunos os provérbios macuas, tão plenos de sabedoria e encanto. Não lhes prometi, no entanto, contar-lhes todos os nossos segredos, como um deles chegou a me sugerir...
    Eis o primeiro provérbio que saquei da memória e lancei na lousa: “Ser esperto é ter lume nos olhos (Okhomàla okhuma nitho)”.   
      – Professora – disse-me, de imediato, Menta – eu conheço algúem muito esperto e sábio!
      – E quem é, Menta? Alguém que nós conhecemos?
    – Sim, vocês conhecem sim. Não sei se o suficiente para perceberam o quanto os seus olhos brilham quando está em busca de conhecer algo mais.
      – E de quem se trata, enfim, minha cara?
      – E de quem mais, se não de mim mesma?
      Todos nós rimos muito com a sua afirmativa!
        “Que petulância essa a da Menta” - pensei comigo.
        Quem veio em seu apoio foi Muipiti, ao dizer-nos:
      – Eu concordo. E não é pelo fato de que somos macuas, podem acreditar!!
    – Ah, meninos! – foi tudo o que consegui dizer. E me pus a observar todos aqueles rostos em busca do lume, com os olhos a brilhar de curiosidade...

surto poético intermitente (vi)

Fortaleza

É sempre sábio saber-se frágil.

O peso de pretender-se invulnerável
pode nos jogar por terra
em uma curva qualquer da estrada.

Aquele que se conhece bem
sabe onde dói o calo, escorre o suor,
onde está localizada a flacidez;     
sabe quando não é possível fazer-se forte
quando deve juntar sua esperança
aos braços daqueles que podem lhe ajudar.

Tenho-me juntado aos que se sabem frágeis,
e em meio à busca de seguirmos mais além,
me torno mais forte com eles, comigo e em Deus.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

surto poético intermitente (v)

Penhora poética

Não temos letras de câmbio
dólar, euro ou mesmo real
e se assinamos letras promissórias
(que promete não sei exatamente o quê)
é  por imitação do ato de autografar
pois mal sabemos das implicações
que estas letras de trocas e de promessas
possa nos acarretar...

Sei que ao assinar estes documentos
tal ato, legalmente expresso em claro texto
pode nos levar ao que se chama “protesto”...
e não é um “ato de protesto” dos que reivindicam
mas é constrangimento, nos obrigando a pagar
mesmo que nada tenhamos com o que resgatar

Enfim, o assunto é difícil de tratar
por isso as pobres rimas a atestar
o que tenho acabado de expressar

Proponho, sem conhecimento de causa
num só fôlego, sem pausa, com pressa:
Penhoremos nossos poemas,
nossas crônicas, ensaios
e tudo o que mais pudermos
bem alto pendurar

Se penhora é intervalo, um ato de suspensão
até que um dia alguém nos avise
que temos “algo a acertar”
penhoremos também nossos suspiros,
certas ansiedades, sonhos, fantasias
alguns gramas de loucura
ou de lúcida e terna alegria
pois que a nós, poetas,
só nos resta mesmo isso:
tecer sem cessar na roca da paciência
os fios da esperança
de que um dia arranquemos do penhor
nossas tão raras jóias –
aquele soneto já quase esquecido
uma crônica escrita às pressas, mal polida
o testamento poético inacabado ou
ainda aquele retrato esboçado:
traços firmes de uma existência bem vivida.

Histórias inacabadas (ii)


Na cristaleira da vó, na penteadeira da tia, na oficina do tio...


Minha avó morava em uma casa com um quintal enorme, cheio de pé de manga, de jabuticaba e de jenipapo. Uma casa antiga, mas tão antiga que a avó da minha avó nasceu e morou lá!
Por ser bem perto de nossa casa, não era difícil saber o que acontecia na casa da vó. Sua poderosa garganta nos avisava quando ela estava brava com o meu tio, o que ocorria praticamente todos os dias!
Vou explicar: meu tio Zezinho não quis fazer como meus outros oito tios, que se casaram e foram para suas casas. Ele e sua irmã gêmea, a tia Zezé, ficaram morando com meus avós.
Tia Zezé era costureira e vendia perfumes de uma marca conhecida. Por isso a sua penteadeira era um luxo só como dizia o meu avô, que vivia por lá investigando o cheiro dos desodorantes e perfumes. Nós, os sobrinhos, éramos proibidos até de entrar em seu quarto!
A cristaleira da minha avó era outro lugar onde não podíamos nem triscar o dedo. Lá ela guardava a louça mais fina, algumas jarras de cristal, uns potes de sobremesa, tudo coisa muita antiga e, para ela, valiosa.
Tio Zezinho consertava tudo em sua oficina cheia de ferramentas e máquinas, no fundo do quintal. Vinha gente de outras cidades em busca de resolver ali os seus problemas. Diziam seus amigos – “Se Zezinho não consertar, pode jogar fora, que não tem mais jeito”.
As brigas de minha avó eram por desleixo dele, que dava a devida atenção à limpeza da casa. Tio Zezinho era distraído de dar nos nervos (dela, é claro!).
Mas ele era tão habilidoso, que tudo que compensava “suas distrações” – imaginem vocês que ele consertava até pensamento! Era o que ele dizia. E provava. Eu era ainda pequeno, mas observei o diálogo dele com um homem que levara uma sela de cavalo para ele consertar...

domingo, 26 de junho de 2011

surto poético intermitente (iv)

És também minha, lua!

A musa súbita, a própria lua, ia pelas ruas, nua
tal como o poeta, repentinamente, cantou
e eu não desejando ficar encalhado
na maré baixa, loucamente solitário,
abandonado, alguns versos teci:

Se me segues, ó lua
e se da tua luz deslumbrada
iluminas reconditamente minha estrada
é que seu amor, mais que imenso, é desmesurado
pois suportas minhas arestas, saliências
minhas flagrantes irregularidades
e assim mesmo, nelas,
deitas, prateado, o teu manto

Enamorei-me de ti, lua!
pois compassiva, clemente
me aceitas, assim tão tua
mesmo com versos mancos,
mesmo com rima crua...

Resposta a um poema do Binho:

Musa súbita

na
noite

na
chuva

no
vento

ia
nua

ia
nau
na
maré
das
ruas

ia
lua