quinta-feira, 28 de março de 2013

poeminha acriano


eles trocavam impressões poéticas            

cada dia lá ia o carteiro entregar correspondência
no velho endereço: no alto do morro, mirante com boa vista
de onde se estendia toda cidade aos seus pés

mas o poeta que recebia tantas cartas todo dia
modesto, amigo, cortês não se permitia desfeita
e ao carteiro oferecia a boa macaxeira,
o açaí, a pupunha cozida
não aceitando que o velho moço dali saísse sem levar
bem forrado no estômago - da alma, é bem dizer
um pedaço do vasto mundo das fartas e substanciosas
palavras ofertadas em meio à boa prosa, entre tantas mastigadas.

o carteiro descia ladeira abaixo,
desde lá da morada do sol
percorrendo cada via
do seu itinerário com as sobras
do que ainda mal deglutira:
quantos casos de assombração
quantas histórias de curupira
quantas luzes apagadas da poronga
em noite fria

e o carteiro ia, de casa em casa
e distribuía junto com as cartas
(carimbos, selos, datas e assinaturas)
tudo isso em outras prosas,
em outras rimas
quando, é claro, não rompia todas as rotinas
e caia próximo ao canal, numa tarde qualquer, de qualquer dia,
na mais doce e o que mais possa expressar
sua mais terna alegria:
soltar pipa com os meninos
correndo feito doido
camisa solta, amarelinha, ao vento
tal como no conto do menino avoado,
como rimava o poeta
ao escrever na manhã daquele dia
mais um conto e todo nele concentrado
– toda sua poesia.

26 out 2005 || ao Francisco Gregório, poeta e ativista cultural acriano

enquanto isso no Acre...

Prometo não fazer qualquer comparação entre Porto Velho x Rio Branco. Ou Rondônia e Acre.

Eles, no campo cultural, estão efetivamente a léguas de nós, rondonienses. Isso é fato, como fato foi a reinauguração da Casa do Seringueiro, na Biblioteca da Floresta, no dia 19 de março deste ano de 2013.

O ex-seringueiro Francisco Alves Pedrosa, de 75 anos, teve uma grande surpresa ao se deparar com o cenário em que ele viveu por décadas, em um seringal, em Cruzeiro do Sul. O reencontro com o passado deu-se ocasionalmente. Ele tinha ido à biblioteca acompanhar Ana Luíza Pedrosa, sua neta, que ia fazer uma pesquisa escolar.

Seu Francisco, ao posar para a fotografia, escolheu a poronga (luminária que está em sua cabeça) para caracterizar-se como seringueiro.

No Parque Natural (antigo Parque Ecológico) existiu na década passada uma pequena casa de seringueiro, que se tornou, em ruínas, um recente sítio arqueológico.

Estive, há 4 anos, visitando a TV e Rádio Aldeia, em Rio Branco e posso, portanto, atestar as léguas percorridas adiante pelos nossos vizinhos.

Devíamos fazer romarias culturais à capital acriana, para nos enchermos de vergonha e voltarmos mais decididos a cuidar verdadeiramente do nosso patrimônio histórico-cultural...

quarta-feira, 27 de março de 2013

da imagem às palavras... das causas impossíveis e seu fascínio

Há sempre muito o que fazer quando nos credenciamos a trabalhar em causas quase impossíveis!

A lista destas causas é imensa. A depender do verbo no infinitivo que usamos ela se multiplica por dezena ou centena.

Quer ver? O verbo erradicar nos leva facilmente a uma dúzia e meia de boas causas:

. Erradicar a malária, a dengue e outras doenças tropicais, endêmicas ainda.

. Erradicar a miséria, que ainda persiste, a despeito do avanço dos programas sociais.

. Erradicar o analfabetismo funcional.

. Erradicar a ausência de gosto, de vontade, do desejo de aventurar-se a ler (com prazer, vontade própria).

Por ora, o leitor é, ainda entre nós, uma caricatura. Alguém que vive deslocado no mundo dos não-leitores ou dos leitores "ocasionais" e de "fôlego curtíssimo".

Daí, então, a imagem do menininho de óculos, candidato a nerd, caso não encontre pares o suficiente para torná-lo mais um na multidão de leitores (isso aqui, convenhamos, é ainda um sonho!).

O fascínio das causas impossíveis está no impossível, no inatingível, na possibilidade de fazermos tudo e ainda não darmos conta de resolvermos, encaminharmos os problemas. Assim, não precisamos ser ou parecer heróis.

A causa da disseminação do gosto pela leitura precisa de pessoas que desejam tentar, se esforçar, caminhar. A vantagem é que, se se cansar, basta uma sombra na beira da estrada e algo bom para se ler. Haverá maior prazer?

Os monstros de Sofia



Minha sobrinha Sofia, quando tinha uns seis anos, era dessas crianças precoces, que dizem coisas que encantam e assustam os adultos. 

Felizmente, minha irmã sempre a tratou a pão e água, pois dizia que ela se transformasse numa estrela, numa artista, não teria como controlá-la, depois.  Bastavam os estragos que os tios e avós faziam...

Eu evitava entrar nas discussões do tipo “como educá-la” e simplesmente me divertia ouvindo suas intermináveis conversas com a mãe. 

Numa delas eu cheguei a anotar o percurso do longo diálogo, que se deu em frente à lousa, que minha irmã improvisou na varanda dos fundos de sua casa.

- Mãe, acho que vi um monstro!

- Um monstro?! Como ele era?

- Vi só a sombra, mãe, mas parecia que tinha dentes de tubarão!
 
- E o que mais?

- Asas de passarinho gigante. 

- Como o gavião ou a águia?

- Qual deles é maior, mãe?

- Acho que a águia.

- Então pareciam asas de gavião. 

- E o que mais?

- Tinha um olho só, mas parecia de Lobo Mau.

- Lobo Mau?

- Sim, quando ele quer devorar a Chapeuzinho Vermelho.

- E como é este olhar?

- De fome, muita fome!!

- Então o lobo não era assim tão mau... Ele estava só faminto!

- Faminto ou com fome, ele não tinha nada que comer a Chapeuzinho! Podia comer esquilos, por exemplo. 

- Que maldade com os esquilinhos, filha!

- Maldade nada, mãe, a senhora não desenhou aquele dia a “cadeia alimentar”? Um bicho que come outro bicho, os maiores que comem os menores? 

- É verdade. São coisas da natureza.

- Monstros tem natureza, mãe?

- É da natureza dos monstros assustar as pessoas. Eles existem para isso.

- Mas existem de verdade mesmo?

- Você não viu um deles ainda agora?

- Vi, mas posso estar enganada... Podia ser apenas uma sombra.

- Mas eles existem na imaginação de muita gente, que jura que já viu muitos deles por aí, principalmente à noite. 

- Como a Mula sem Cabeça, mãe?

- E o Lobisomem!

- Na chácara da vó Mercedes tem um Lobisomem, mãe. Quem me contou foi a Vera. Mas ele é mansinho. 

- Como é?!

- Ela disse que ele ficou assim depois que comeu linguiça de porco, feita pelo tio Vardo. 

- Essa é boa! Que história é essa, Sofia?

- Eu juro que é verdade, mãe. O tio Vardo confirmou. Ele mesmo preparou a linguiça, que tinha 27 pedaços. Era imensa! Ele fez isso para prender o Lobisomem e depois matar e arrancar o couro...

- E ele matou?

- Não. Ele ficou com pena. O Lobisomem tinha filhotes. 

- Filhotes?

- Foi o que ele me contou.

- Quantos?

- Três. 

- E os filhotes comeram também a linguiça?

- Não, mãe! Eles mamavam na Mãe Lobisomem, que também estava junto. 

- E como aconteceu isso?

- Foi numa noite de lua cheia. Ele fez a linguiça com 27 pedaços e dentro tinha uma linha de pescar bem grossa. O bicho que comesse teria que chegar até o último pedaço, que ele e o tio Tonho estavam segurando na ponta. Os lobisomens começaram a comer e foram chegando perto da casa da vó Mercedes. Quando deu meia noite eles começaram a uivar e estavam bem pertinho do pé de figo, onde dormem as galinhas (lembra?). Logo depois chegaram na frente da varanda da casa do tio Tonho. 

- E o que aconteceu?

- Eles tinham comido tanto, mas tanto, que dormiram ali mesmo...  

- E eles aproveitaram para matá-los?

- Bem que eles queriam, mas ficaram com dó, por causa dos filhotinhos, como eu te disse!

- E os lobisomens, então, viraram gente, quando o dia amanheceu...

- Ninguém sabe! O tio Vardo me disse que ele e o tio Tonho não conseguiram por nada deste mundo ficar acordado até o sol raiar. Eles beberam muito café, um beliscou o outro para não pegarem no sono, mas nada! Dormiram assim mesmo. 

- E quando o dia amanheceu...

- Eles não estavam mais lá!

- Mas devem ter deixado alguma pista.

- Deixaram sim. A linha de pescar, com pedaços de linguiça está guardada no paiol para quem quiser ver. 

- E você, filha, tem medo de Lobisomem? 

- Não tenho não! O tio Vardo prometeu que nas próximas férias fará mais uma isca de linguiça. Mas desta vez ele vai fotografar! 

- Logo, logo você estará de férias e nós iremos passar uns dias na chácara. Vou ficar acordada para ver se tudo isso é verdade mesmo.

- Que bom, mãe, será muito divertido.

- Mas e o monstro? Você não terminou de descrevê-lo.

- Ah, mãe, cansei! Estou com fome...

E assim se encerrou umas das tantas histórias que ouvi da boca de Sofia, nos dias em que estive em sua casa, em Apucarana, no Paraná. Na última mensagem que recebi dela, pela internet, parece que está vindo à tona uma nova história de suas aventuras. Veja aí:

- Tio, lembra o canivete que o Homem do Saco deixou bem perto do pé de limão rosa? O dono dele apareceu e perguntou quem tinha roubado sua relíquia de infância... Depois o senhor me liga que eu te conto tudo o que aconteceu! Sofia.

Prometi ligar e farei isso no próximo feriado, pois precisaremos de algumas horas para colocar nossas conversas em dia.