quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Exercício de escrita espontâneo e inesperado

...um texto...

SUA FAMÍLIA É RESILIENTE?! Ideias coletadas em uma breve leitura...

Na adversidade é que se forja a resiliência (flexibilidade mais resistência; rápido retorno ao equilíbrio e à serenidade após uma crise de qualquer natureza).

A dor é a semente da superação.

Os obstáculos deveriam ser vistos como sustentáculos do esforço contínuo e necessário para se atingir objetivos.

O incômodo que os atletas sentem após os exercícios são pequenas dores que os preparam para a superação de metas e a consolidação das conquistas, que sempre exigem muito esforço.

A existência de um grau mínimo de resiliência já nos provê de forças suficientes para enfrentar parte das adversidades, nos ajudando a resistir e a retornar ao equilíbrio possível.

Quando, porém, ampliamos a resiliência nos candidatamos a mudanças mais profundas em nossa vida. Estamos referindo aos processos consistentes de transformação e desenvolvimento de diversos aspectos da nossa vida emocional, espiritual.

A resiliência também se manifesta em nossa vida familiar, mesmo que não pensemos nisso ou sequer avaliemos o grau ou as situações em que ela se manifesta.

Como não faltam ocorrências dolorosas, eventos traumáticos, ocasiões de desajustes e desequilíbrio estamos, o tempo todo, usando e testando a resiliência familiar.

Todos estamos, a sós ou em grupo, sujeitos a riscos, ameaças, perigos. Estaremos mais ou menos vulneráveis conforme a capacidade de absorvermos as adversidades e seus fatores de risco.

Há riscos de toda natureza. Cíclicos (ocorrem de tempo em tempo); cotidianos (pequenos e simples transtornos, aborrecimentos); traumáticos e imprevistos (ocorrências de violência); crônicos (que são recorrentes e com os quais se convive sem muitos abalos) e outros.

Administrar os riscos é necessário. Ignorá-los pode ser perigoso!

Há também fatores de proteção que podem atenuar ou neutralizar os impactos que os riscos trazem à convivência em família. Entre outros, destacamos:

. Celebrações em família - instantes mais intensos de convivência afetiva.

. Tempo compartilhado nas rotinas e tradições familiares - momentos aguardados e vivenciados com prazer e leveza.

. Comunicação produtiva e desembaraçada - conversa mais fluida e acolhedora.

. Lazer em grupo - diversas combinações de momentos e formas de diversão.

. Vínculos afetivos mais estreitos - a afetividade equilibrada traz segurança.

Padrões de conduta positiva são criados quando a família tem um bom nível de resiliência. Um deles é a habilidade de se resolver os conflitos e a buscar o consenso mesmo em meio aos dilemas e crises.

Há famílias que lidam com as adversidades de modo mais "introvertido" ou "extrovertido", sereno ou explosivo. São traços constitutivos que se construíram e que não devem ser avaliados como positivos ou negativos. São o que são.

O importante é que a presença em graus elevados da resiliência faz com que as circunstâncias adversas sejam superadas, restaurando-se a integridade dos laços afetivos e o clima de alegria e bem-estar.

É possível aumentar o grau de resiliência familiar. Os caminhos e meios são diversos, mas alguns pontos merecem reflexão:

. Crenças

- Qual o significado que damos ao que ocorre cotidianamente em família?

- Quais são os valores que cultivamos juntos? Estão mais focados no SER ou no TER? No próprio prazer, individual ou na busca de se conviver a despeito das dificuldades a transpor?

- Temos cultivado a espiritualidade, a religiosidade, a transcendência?

- Temos dado atenção às tradições familiares, ao cultivo da memória, o culto aos ancestrais?

- Temos conseguido compartilhar sentidos, percepções, sentimentos, significados?

. Padrões de convivência e organização

- Temos conseguido negociar os papéis no jogo da convivência diária, como pais, cônjuges, filhos?

- Temos respeitado o poder, a autoridade daqueles que a tem, seja por função ou mérito?

- Como andam os laços de proteção e segurança que temos construído juntos? Frouxos, apertados, resistentes?

- Os nossos níveis de coerência entre o pensamos e como agimos estão adequados?

- Temos conseguido cooperar com os cuidados que a casa, o quintal, o jardim exigem?

- Como anda a avaliação dos compromissos e objetivos que temos traçado juntos?

. Modos de resolução de problemas em família

- Somos flexíveis à mudança?

- Temos entendido as crises e adversidades como desafios a serem verdadeiramente compartilhados (ou tenho feito o papel do indiferente, do soluciona-tudo-sozinho, do acusador?)

- Estamos conseguindo nos manter coesos, firmes e nos apoiando um ao outro?

- Temos aprendido a valorizar e a ampliar as conquistas já consolidadas? (o que temos feito de especial, além da rotina?)

- Temos aumentado a nossa capacidade de aprendizado coletivo? (temos lido, discutido temas úteis e produtivos, ouvido boas músicas, assistido bons filmes, passeado por lugares interessantes?)

Sonia Rocío De la Portilla Maya, psiquiatra colombiana que inspirou todo este artigo, afirma existir dois tipos de recursos que ampliam a resiliência em família, o afetivo e o social.

Os recursos afetivos dizem respeito a quatro sentimentos e/ou atitudes que merecem atenção: autocontrole; tristeza; tédio e recuperação do equilíbrio.

O autocontrole tem a ver com a nossa capacidade de lidar com situações de estresse. Para adquiri-la é necessário trabalhar os impulsos, principalmente os da violência (infligida aos outros ou a si mesmo).

A tristeza exige manejo, cuidado. Temos que aprender a lidar com suas ocorrências. Negá-la, mascará-la ou buscar suprimi-la por meio de medicamentos implica em maiores riscos, mais tarde. Esta emoção básica deve ser sentida, vivenciada e superada sem drama ou trauma, por serem desnecessários.

O tédio, este sentimento assustador e tal nosso de cada dia, também exige experiência com a sua lida. Ele está associado a como vivenciamos o tempo. Svendsen nos diz que o tempo para quem experimenta o tédio "em vez de ser um horizonte para oportunidades, é algo que precisa ser consumido". O entediado não sabe o que fazer com o tempo livre, com o tempo do ócio (que deveria ser usado para o aprendizagem prazeroso, para a criatividade, conforme proposta de Domenico De Masi).

Por fim, a recuperação do equilíbrio é uma das formas de se experimentar a resiliência. Após a batalha pela resistência e a luta para ser preservar dos abalos, temos o processo de retomado do momento anterior, do equilíbrio, que nunca será o mesmo (estaremos mais maduros, é certo), mas é o momento da tranquilidade, da segurança.

Os recursos sociais lidam basicamente com a nossa capacidade de mobilizar apoio nas redes de relacionamento em que estamos inseridos.

Pais, educadores e profissionais da saúde mental têm, portanto, muitas tarefas a cumprir juntos, em face da necessidade que se tem de se fortalecer a resiliência familiar.

As políticas públicas, em quaisquer níveis, estão longe de prover as condições para que as famílias atinjam níveis mais elevados de resiliência. O que há, de modo geral, são projetos e programas esporádicos que atendem, por razões emergenciais, determinadas demandas sociais...

Cabe a adesão de mais instituições e pessoas neste esforço, que deve ser coletivo.

Para finalizar, e atento ao texto original do qual se originou este estudo e reflexões (Risco suicida e sua prevenção a partir da família) transcreveremos as palavras da Dra. Sonia Maya:

. A família é a rede mais importante na prevenção do risco suicida (e de outros eventos críticos, acrescentamos);

. É fundamental promover, junto às famílias, a sensação de união e apoio, a expressão das emoções e a manutenção de um ambiente cordial, no qual os conflitos diminuam ou sejam superados.

...outro texto...

A resiliência é uma força que se opõe e nos resguarda das devastações emocionais e físicas que as vivências críticas nos trazem.

Alguma coisa ruim pode nos acontecer? Se acontecer, os resultados serão danosos?

Se você está às voltas com algum tipo de situação adversa em que há risco de sofrer choques, perturbações, abalos a sua RESILIÊNCIA será posta à prova.

A capacidade de conter a trepidação, a oscilação, a comoção e sair da situação adversa com um grau pequeno ou praticamente nulo de repercussão negativa indicará o nível de resiliência alcançado. Quanto menor o trauma, maior a resiliência.


Em suma, a cada vez que enfrentamos uma adversidade e saímos fortalecidos, maior se torna a nossa resiliência. Quanto maior a nossa resiliência mais capacidade temos para superarmos traumas e aprender com eles.

Fonte de inspiração: http://bit.ly/riscosuicidaefamilia

segunda-feira, 30 de março de 2015

Filho de quê?!

- É duro na queda, meio bruto. Ele não nega a raça, nem o berço. É filho do maior beque que o time da nossa cidade já teve. Como diz um compadre meu, um mineiro apaixonado por futebol, fi di béqui é fi di béqui... Estes meninos parecem que já nascem com trava no solado do pé!

Eu custei a entender o sentido daquela conversa... Eu era estagiário de Administração, lá em Sertãozinho, e quem fazia este comentário era uma lenda vida, uma autoridade na fábrica. Sabia tudo das coisas práticas, além de ter a sabedoria dos simples e uma boa conversa. Seu Estevão!

E para destrinchar o rolo que virou, para mim, aquela conversa? Escute só!

Os interlocutores do seu Estevão, amantes da bola, pegaram firme no atalho aberto por ele.

Seguiram falando dos jogadores de defesa, heroicos, de todas as épocas. Comecei até a anotar alguns nomes: Pinheiro, do Fluminense; Luis Pereira, do Palmeiras; Mauro Galvão, do Vasco. Até os estrangeiros foram citados: Gamarra, do Paraguai e Darío Pereyra, do São Paulo.

- Seu Estevão, o senhor estava falando era do beque central, aquele jogador da defesa?

- Sim, meu filho. Você gosta de bater bola?

- Até gosto, mas sou perna-de-pau! Só jogo no gol.

- Então, vai entrar pro nosso time. Aqui a gente aproveita todo mundo!

- Eu só não entendo é a diferença do beque central para o quarto-zagueiro. O senhor sabe?

- Ô, meu filho, fui treinador muito tempo. Categoria de base. O beque central é quem dá o primeiro combate. É um jogador de pegada, tem que ser firme, mas sem dar botinada! Já o quarto-zagueiro é o que fica mais atrás, para o segundo combate, para o rebote. Tem que ser mais técnico.

- Saber matar no peito?!

Riram de mim. Olharam uns para os outros e perceberam que eu era do tipo goleiro-espectador ocasional...

- Matar no peito, tocar de primeira, cabecear de olhos abertos e dar chutão, quando necessário!

- Seu Estevão, eu perdi o começo desta conversa. Sobre o que vocês conversavam mesmo?!

- Ah, sim, era sobre o novo supervisor. É um moço boa praça, que começou trabalhar esta semana. É formado! Ele fez uma preleção...

- Preleção?!

- Ah, desculpa, quem faz preleção é técnico em dia de jogo! Ele fez uma pequena palestra e nos motivou a agir como ele, como um filho de beque!

- Como assim?!

- Ora, o pai dele jogou no meu time e foi o melhor beque central desta cidade. Chegou a ser contratado pelo Botafogo, de Ribeirão Preto, no tempo do Sócrates. Mas estourou o menisco e aí adeus carreira!

- Puxa vida! Sim, mas o que faz um "filho de beque"?

- Imita o pai, ora! Jogo para o time, dá o primeiro combate! Corre atrás!

- Entendi...

Por respeito a tudo o que representava o seu Estevão calei-me e fui conversar com o supervisor, que eu não conhecia ainda (havia pegado uma dengue e fiquei afastado).

- Senhor, posso entrar?

- Nada de senhor aqui! Pode me chamar de Ricardo. Você é o nosso estagiário no Departamento de Material, não é?

- Sim, prazer, Ricardo. Gostaria de ter uma conversa em particular com você.

- Pode ser aqui?

- Acho melhor não!

Fomos para uma sala de reuniões e ele demonstrou preocupação.

- Fica tranquilo, pois não é nada sério, acho...

- Pode falar abertamente, é a política da empresa, você sabe!

- Sei, sim. Vou direto ao assunto.

Narrei, em detalhes, a conversa tida no refeitório, sobre o futebol e a pequena palestra dele...

Ele riu de quase perder o fôlego. O chefe de seu departamento não se aguentou e veio saber da novidade. Esborrachou-se também de rir! Mas o alertou:

- Agora, Ricardo, pode esquecer o seu inglês de vez!! Nada de feedback por aqui... Nunca mais!

- Pode deixar. Vamos ter que aproveitar esta situação e “virar o jogo”!

Resultado: a conversa sobre o filho de beque correu a fábrica e chegou ao ouvido dos donos.

Seu Estevão ganhou aumento para treinar o time dos filhos dos funcionários, antes do horário de expediente.

As equipes, com estas e outras novidades que surgiram, aumentaram a produtividade, graças ao reforço do futebol.

Inglês só ficou permitido durante as aulas e nas preleções do seu Estevão, que passou a ser chamado de “professor”.

Ele colocou os meninos para pesquisar sobre a origem do futebol e exigia que o jogo fosse bilíngue.

O escanteio reencontrou o corner e o pênalti reconquistou grafia e entonação britânica: penalty

- Vá que algum desses meus meninos acabe na Europa. Vai saber falar inglês, sim!



domingo, 29 de março de 2015

O lado sombra

A professora do meu filho dizia que toda criança, mesmo as menores, era capaz de entender "muito além do que a gente pode imaginar".Que nós, os pais, déssemos apoio em casa, sem "quebrar a onda" delas. 

Era assim em sala de aula, naquela escola. Toda conversa, mesmo as mais atravessadas, seriam sempre aproveitadas...

"Então tá, né!".Ouvi esta frase irônica de alguns pais, na saída da reunião.

Meses depois me pus a apreciar o "método de livre associação" da professora, que começava a fazer efeito:

- Luz, cama, ação!!

- Epa! Não é câmera, Stênio?

- Não, a cama nesta frase foi ideia minha. A professora pediu que a gente inventasse uma frase. Podia ser parecida com outra. Inventei!

- Parece que estas três coisas não combinam...

- É do meu filme, mãe!

- Mas não era uma frase?

- Era, mas virou filme. Filme de ação.

- Ahn?! Com cama e tudo?

- Mãe, os verbos de ação que eu escolhi, na aula, foram: sonhar, dormir e imaginar.

- Mas desde quando dormir é verbo de ação?

- Claro que é! Foi a senhora mesmo quem disse isso.

- Eu? Quando?

- A senhora comentou que nem dormindo eu sossego!

- Era só um modo de dizer, uma expressão.

- Meus sonhos são de ação mesmo. Também de suspense, de aventura, às vezes de terror... Tem também um pouco de comédia.

- Então todo o enredo do seu filme acontece no mundo dos sonhos?

- Não, mãe, não é tão simples assim! A cama é apenas um portal.

- Você deita, apaga a luz, atravessa o portal e entra em ação?!

- Nada disso! Seria muito previsível. Na verdade, a cama é onde os personagens da mitologia grega desembarcarão para a aventura.

- É cada ideia!!

- Mãe, a senhora não está ajudando! Vou precisar de vocês. Tenho que conseguir uma cabeça de touro, com chifres bem grandes, para o meu filme. O primeiro personagem que aparecerá será o Minotauro. Tem que ser realista e gravado em casa. O pai...

- Seu pai?! Pode ir sonhando. Machista como ele é, não faria um papel desses de maneira alguma!

- Não?!

- Não!

- Mas o Minotauro...

- Tem chifres.

- E o que tem o chifre?

- É um símbolo que assombra muitos homens.

- Ah, mãe, você não quer dizer que o pai tem medo de ser traído, tem?

- Então você entende?

- Você nunca se apaixonaria por outro homem, mãe, eu sei!

- Nem pensar!! Um só basta, dá trabalho. E, além disso...

- Você gosta mesmo do meu pai, não é, mãe?! Ele não tem feito por onde merecer, mas você faz a sua parte. Eu sei!

- Hein?! Que história é essa, filho? Este assunto...

- Este assunto também me interessa! Vocês são meus pais, lembra? E eu posso ajudar, como tenho tentado. Ontem mesmo conversei com o pai...

- O quê?! Conversou o quê?!

- Sobre as três grandes paixões dos homens.

- Que conversa foi essa?

- Ouvi na escola... Os homens costumam gostar muito de três coisas: amigos, futebol e cerveja.

- Ahn?! Foi a sua professora quem disse isso?!

- Não, mãe, foi um homem, um escritor que visitou nossa turma. Acho que isso acabou saindo, meio sem querer...

- Ah, sim! O livro dele então era sobre outro assunto.

- Era sobre as nossas escolhas, sobre o destino. Acabamos falando de moda e das pessoas que seguem as ideias de outras pessoas sem perceber!

- Meu Deus, preciso voltar para a escola! Me conta mais...

- Ele disse que parte dos homens adora cumprir ordens. Eles não pensam, não tem autonomia... Tipo os soldados na guerra. Por isso, eles conseguem matar tantas pessoas. Mas depois piram o cabeção. E aí matam mais gente e se matam. Não nascemos para certas coisas terminadas em “ança”, mãe, o escritor disse!

- Que coisas são essas?

- Matança, lambança e vingança...

- Rimou, mas é esquisito... Sim, mas e a conversa com o seu pai, o que você disse?

- Eu falei que ele parecia o personagem de uma história que criamos em sala, ao vivo, na visita do autor do livro. Nós escolhemos três palavras no dicionário, ao acaso. E ele provou que nós éramos bons contadores de histórias.

- Me arrepio só de pensar nas palavras que saíram...

- Foi uma fácil, uma mais ou menos e uma difícil. Ovelha, propício e mequetrefe.

- E o seu pai?!

- Mãe, mequetrefe é o mesmo que enxerido, inútil, patife. E tem muita gente assim que comanda pessoas, que influencia, sabe?!

- Não sei de mais nada!! Eu já disse que vou voltar para a escola e juro que vou! Continua.

- Brincamos, no final, de trava-língua e de fazer rima. Alguém lembrou que mequetrefe rimava com chefe. Lembramos também de uma brincadeira que a professora tinha feito em sala: “Cuidado com as ordens do chefe!”.

- Esta professora...

- Ensina a gente a pensar, só isso, mãe!

- Continua que eu estou curiosa!!

- Mãe, o pai se deixa levar por pessoas do tipo “mequetrefe”, inclusive aquele que é o seu “chefe”, um cara totalmente sem noção! Qualquer criança com um pouco de juízo na cabeça sabe fazer escolhas mais sensatas...

- Escolhas mais sensatas! Meu filho, sua professora está roubando a sua infância. Você está se tornando adulto muito cedo, não acha?

- Não acho, não! E para a senhora ficar tranquila, a gente mais brinca em sala de aula, do que estuda, principalmente aquelas coisas chatas dos livros, sabe?

- Verdade?

- Juro por tudo o que é sagrado pra mim e pra você!

- Como assim?! O seu sagrado agora é diferente do meu?

 - Mãe, eu gosto de outras coisas também! Até do Hades eu sou fã. O inferno mitológico dos antigos era maneiro, mãe! Olha aqui a minha camiseta: Darth Wader. Todos nós temos um lado sombra... Ignorar isso pode barrar a luz que trazemos dentro de nós.

- Não vai dizer que a professora...

- Não foi ela! A escolha foi minha. Foi na Semana do Cinema. A senhora não lembra que foram seis dias, até no sábado? Eu escolhi Star Wars. Debatemos muito! Foi a psicóloga da escola que falou sobre nossa sombra. Ganhei até uma figurinha do ídolo dela, o Jung (escreve com jota, mas se pronuncia como i). J - u - n - g.

- Bem e o seu pai, o que disse?

- Vai mudar de emprego e de amigos.

- Eu bem que achei ele meio esquisito, falando umas coisas sem sentido...

- Ah, mãe, ganhei a aposta que fiz com ele. Ele não acertou nenhuma daquelas três palavras (amigo, futebol e cerveja). Eu sabia que o lado sombra dele ia ser mais forte, eu sabia!

- Filho!!

- Mãe, desculpe, mas tenho que colocar em prática o que estou aprendendo na escola! Não é assim que tem que ser?

- Que palavras você achou que ele iria dizer?

- Errei uma só. Ele se superou, mãe! Disse que o que mais importava era Deus, a esposa (“sua mãe”, ele falou!) e a família. Eu achava que ia ser Deus, a esposa e os filhos...

- Queria estar lá para ver a cara de espanto dele...

- De espanto ou de choro?

- Ele chorou?

- Homens não choram, mãe! São os ciscos...

- Sim, são os ciscos...

sábado, 21 de março de 2015

Se é para o bem...

O velho e bom latim carrega em seus vocábulos, utilizados fartamente na linguagem jurídica, suas "razões de imediata aplicação" em circunstâncias corriqueiras ou emergenciais. Quer ver? 

- Doutor, eu tinha que fazer aquilo!

- Como assim, meu cliente?

- Uma voz me dizia...

- E o que ela dizia? 

- Que o meu caminho já estava traçado... 

- Mas que caminho? 

- O caminho para o fim. 

- Fim do dito cujo? 

- Não, doutor! Também estudei e sei que fim é o mesmo que objetivo. Os objetivos nobres podem ser chamados de missão... Eu tinha, portanto, uma missão. 

- Que raio de missão, meu cliente?!

- Criar os meios para se atingir o fim, ora!

- Ahn?!

- Isso não é filosofia, doutor? Não é lógica pura?

- Sim, mas que fim, que objetivo, que missão importante era essa? Estão te acusando de ter matado uma pessoa... Eu espero não ouvir de sua boca que você é o assassino... Aliás, não ouvirei, pois aos advogados conversas de cunho confessional não convencem. O que importa são os fatos. E o fato é que você não estava presente na cena do crime.

- Doutor, eu não estive lá, materialmente falando, é verdade. Mas sei que foi meu pensamento que lá se materializou, de alguma forma. 

- Tu é leso, é? Você vai dizer isso ao juiz, vai?! 

- E quem acredita em "poder do pensamento", doutor? 

- Sim, claro! Ainda bem...

O advogado respirou mais aliviado. Restava uma questão, porém, a esclarecer: 

- E que "meios” são estes “para se atingir o fim"?

- Quando se criam as condições para que uma vingança seja executada, isso não é o mesmo que prover meios para se atingir um fim pré-determinado?

- De certa forma, sim. Mas aonde você quer chegar?

- Eu apenas "devolvi" àquele sujeito a ameaça que ele me fez. Só pensei (eu juro!) que tudo que ele me desejasse, de todo coração, que ele tivesse em dobro. Foram dois tiros, não foi? 

- Sim. Mas e a tal da missão?

- Sou gari, doutor. Minha tarefa de todo dia é limpar a cidade. Então, naquela hora eu me imaginei varrendo do mapa, da vida, todas as pessoas que vivem para humilhar os mais simples... Ele era muito abusado, pisava na gente. 

- Mas teve o que mereceu! 

- Não sei, doutor, não sei. O que eu e o senhor mereceremos, por nossa vez? Somos pecadores... Eu não devia ter desejado tão firmemente que ele recebesse de volta o que me desejava! 

- Ele desejou o quê, homem de Deus?! 

- Ele disse que pessoas como eu, que se metem a fazer tudo certinho, merece uma bala nos cornos, para deixar de ser besta! Que ele mesmo me meteria uma, se não custasse muito caro... Disse mais: que eu não valia "uma vela acesa".

- Não vá dizer que a praga da "vela apagada" foi você quem jogou?

- Como assim, doutor? 

- No velório do dito cujo não ficou nenhuma vela acesa... Foi você quem desejou isso?

- Foi sim!

- E o que mais? 

- Não posso dizer.

- Ah, você me dizer sim, do contrário...

- Doutor, o senhor está mesmo me ameaçando? Vê lá, hein, eu não tenho controle sobre os meus pensamentos e desejos... O senhor que se cuide!

- Eu, você está louco?! Isso foi só força de expressão... Mas se você puder me contar, sou de todo ouvido. 

- Conto nada! Descobri esta semana que não basta eu pensar... As coisas só acontecem depois que falo com alguém. Aí o mal ganha força e sai pelo mundo causando desgraça. Da minha boca não sairá mais nada! 

- Ufa! Ainda bem. 

- Mas ontem, doutor, eu comentei com a minha esposa, que o senhor é muito careiro; que se não conseguisse negociar um preço melhor eu acabaria amaldiçoando o senhor e todos os advogados do mundo! Ô raça que se aproveita dos necessitados!!

- Meu cliente, você já ouviu falar do pro bono

- Ainda não, mas eu gostei da sonoridade! É latim? 

- Sim, é uma citação latina e significa "para o bem". 

- Para o bem de quem, doutor?! 

- De todos. Principalmente do senhor, que passará a ter o meu serviço gratuito, desde agora. Farei justiça! O senhor, além de inocente, é um homem de poucas posses.

- Doutor, o senhor é muito gentil... 

- Imagina! É um dever meu prestar serviços voluntários, vez ou outra... E desta oportunidade eu não abriria mão de maneira alguma!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Enquanto se espera nenê...

Fui à podóloga com minha esposa, curioso para saber como é o trabalho dela... Não sabia que existia tanta unha encravada por aí até começar a pagar os serviços desta profissional, praticamente todo mês!

Havia também uma manicure no local. E uma grande sala de espera, onde não consegui fazer o que mais gosto nestas ocasiões: colocar em dia a leitura das revistas de fofoca... 

O movimento estava grande e acabei foi ouvindo conversa alheia, como esta que reproduzirei abaixo.

Nem preciso dizer o quanto aprendi e me diverti neste dia! As duas personagens pareciam não se conhecer previamente. Determinados ambientes convidam a conversas espontâneas ou inusitadas...

- Que barriga é essa?
- Estou esperando nenê!
- Acho melhor você esperar sentada, pois eles costumam demorar pra chegar.
- Que nada! Até que passa rápido.
- E como você sabe disso?
- Ora, já é o meu terceiro filho!
- E é é?!
- É!
- Muitos chegam mesmo apressados... Querem nascer antes da hora!
- Isso depende da mãe e dos outros apressadinhos à nossa volta. Eu não tenho pressa de nada. Curto cada segundo e converso muito com ele...
- Que legal! E sobre o que vocês conversam?
- Ah, são assuntos de família.
- E você não pode revelar?
- Não!
- Nadinha?
- Só uma coisa posso dizer...
- Ah, fala logo!!
- ... que ele sempre terá o meu apoio.
- Só isso?
- Como só isso?
- Mãe que é mãe sempre apoia os filhos, que eu saiba!
- É verdade. Apoiam na hora e nas coisas erradas. Grande ajuda!!
- E que apoio é esse, então, que você está se referindo?
- Apoio é também arrimo, proteção, alavanca. É força para fazer crescer saudável. Ele terá sempre o meu apoio nos seus bons propósitos. Mas se ele vacilar...
- Sim, o que você fará? Já está prometendo surra, é?
- Prometendo, não, estou alertando sobre tudo o que não tolero.
- Diz, então, só uma coisa que você não tolera!
- Eu já disse que é assunto de família... Mas vou dar um exemplo: não tolero roupa de menino espalhada pela casa.
- Ah, sim, e você julga que isso é coisa importante, então?
- Na minha casa, sim. Na Casa da Mãe Joana eu não faço ideia do que acham. Há muitas maneiras de nos divertirmos sem ser à custa dos outros. Comigo é assim: bagunçou, arrumou!
- E você já conversa com ele sobre isso?
- Converso. Nós o esperamos com muito amor, mas ele precisa saber o que o espera.
- Ah!!

domingo, 11 de janeiro de 2015

Numa curva do rio Guaporé nossas naus se encontraram: Capitão Thomas e o Príncipe da Beira

para escrever o meu primeiro romance de ficção histórica, acima intitulado, lancei a questão apresentada a seguir, num grupo de discussão.

- Quais são os contornos biográficos, ficcionais ou reais, de uma pessoa que se tornou uma lenda?

O estudioso G. Mascarenhas, que tem se debruçado sobre a ficcionalidade dos livros de aventura, mangás e animes me respondeu:

- Os detalhes imprecisos sobre a vida de um ser lendário, mesmo que humano, lembra uma ilha de contorno fluido, cuja figura é inconstante. A depender de onde sopra o vento, as areias se deslocam e um novo desenho surge. Como mapear algo assim mutável? Esta ilha, é bom situar, está localizada num mar de histórias, de gêneros diversos, que interage com a lenda e o seu mundo.

Aproveitando sua disponibilidade, fiz outra pergunta:

- É possível, hoje, explorar seres humanos com características lendárias, num romance de ficção histórica?

A resposta é um primor de objetividade e síntese:

- Hoje, mais do que nunca, precisamos recuperar histórias heróicas, de pessoas simples, anônimas. Elas fogem do perfil clássico dos herois por não terem, é claro, poderes supranormais. Mas tem virtudes heroicas notáveis e dignas de serem descritas por meio da arte ficcional.

Não resisti e continuei importunando-o. Descobri que o Mascarenhas já passou dos 75 anos... Mas é muito solícito.

- Naturalmente que a arte ficcional e o registro documental podem se entrelaçar, não é?

- Sem dúvida. A própria ideia de ficção história remete a estes dois modelos de investigação e escrita. Disse investigação, pois estes personagens, como foros de realidade histórica, precisam ser conhecidos por meio de pesquisas metódicas. A escrita, que se socorre da arte ficcional, tem por missão confundir o leitor. Ao lado da verossimilhança (aquela velha impressa de realidade que se parece, de verdade, real!), o desafio da consistência narrativa e a âncora de alguns fatos históricos já exaustivamente estudados.

O nosso personagem lendário é o Capitão Thomas, de Barbados, no Caribe. Um pirata do século XVII, que tinha uma biblioteca no seu navio. Teria vivido entre 1688 e 1718. A bandeira do seu navio tinha de um lado um punhal e do outro um coração. Era chamado, por todos estes motivos, de "pirata cavalheiro"...

Em breve, apresentaremos os primeiros esboços desta lenda viva dos sete mares. 

sábado, 10 de janeiro de 2015

A menina que tinha ouvido de mercador

Ela não ouvia mesmo. Ou fingia não ouvir. O fato é que se colocava a salvo dos chamados da mãe.

A atenção, o envolvimento com os brinquedos, diriam alguns, desvia do ouvido infantil qualquer chamado.

Não se sabia se era o caso, pois em casa ela ouvia bem. Quando atravessava a cerca da casa vizinha, porém, apagava-se o sentido da audição.

A audição aguçada é para poucos, li em algum lugar. Diziam os antigos que os tuberculosos, por conta do isolamento a que eram forçados, tinha este sentido muito apurado.

Ter ouvido de tuberculoso pode ser, hoje, sinônimo de enxerimento, de se desejar ouvir mais do que se deve, principalmente coisas da vida alheia.

E o ouvido de mercador? Nem sempre os comerciantes estão dispostos a baixar o preço de suas mercadorias. Daí eles ignorarem, sem nenhuma solenidade, nossas propostas de barganha.

Hoje a menina atravessou a cerca para o lado de lá.

Do lado outro não sei o que existe ao certo, além do quintal cheio de árvores e uma varanda nos fundos da casa da vizinha.

É comum que algumas crianças cheguem até a cerca, do lado de cá, atravessem este limite tão frágil e venham aqui brincar.

Estas outras meninas ouvem muito bem. Questão de genética? Pouco provável. Os comportamentalistas talvez expliquem o caso por meio dos estímulos e reações. Como elas podem apanhar da mãe quando desobedecem, costumam prontamente atender ao chamado.

A menina brincou por lá, mas não estava cumprindo o combinado.

Mãe adora combinar horário. Dá segurança. O controle fica à mão, nos ponteiros do relógio. Relógio que pulsa, por vezes, nos compassos do coração. Ou da razão, quando o coração não aguenta mais...

Com criança o tempo é algo mais vago, sem recipiente que o comporte.

- Volte logo! Não vá demorar, senão da próxima vez...

Os filhos, da adolescência até mais um pouco, costumam ser vigiados, rigorosa ou frouxamente, nos seus horários de entrada e saída.

Além do relógio, existem outros indicadores do tempo e de seu controle, como o galo. E quando o galo canta e ele ou ela ainda não chegou? A aflição vai tomando conta e sufocando até que haja sinais de que eles estão vivos... Nessas horas, não há hora que passe. Elas escorrem pastosas, agonizantes.

Como a menina não estava cumprindo o combinado, ouviu-se o chamado.

Estava na hora que ela deveria voltar. Como reforço, a mãe foi até a cerca e a chamou. E chamou, chamou, chamou. Nada. Quem veio atender? Outra menina, com um recadinho:

- Ela está almoçando e não poderá ir agora pra casa!

“É muito folgada mesmo!” - pensou a mãe. “A abusada ainda explora a colega... Quando ela chegar nós teremos uma boa conversa!”.

- Você não ouviu eu te chamar?

A mãe não quis saber de conversa e exerceu o seu direito de corrigenda. Levou a mão à sua orelha. Dela sim, da criança. Porque orelha de criança dizem ter função educativa. Recomenda-se, no entanto, dosar a força. Corrigenda não é o mesmo que espancamento. Pede bom senso.

- Você não tem limite, não é?

Limite? Ela até parecia saber do que se tratava:

- Está bem, mãe, da próxima vez eu não demoro mais. Eu vou obedecer.

Da orelha a mãe, no entanto, não largou até que ela entrasse na cozinha.

O choro foi breve e logo ela voltou a brincar.

Eu que assistia a tudo, de coração meio partido, pus-me a refletir que aquilo era tão somente um freio, o limite necessário à educação dos filhos, que pode ser imposto ou negociado de muitas maneiras.

Limites que ela haveria de levar consigo pelo resto da vida, como baliza, roteiro, rumo certo.

É possível que outras correções fossem ainda preciso, mais tarde, quem sabe até algumas surras, mas nada que viessem a deixar as marcas do rancor, da mágoa.

Rigor de pai e mãe é solúvel em água. Depois de algumas lágrimas tende-se a esquecer.

Os limites impostos, estes não, são os cintos de segurança que se leva para a vida inteira.


Ah sim, a menina está ouvindo melhor e aprendeu a voltar para casa. Passa bem e promete ser uma criança normal. Queira Deus!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

A moça que ajudou a eleger um presidente

            Certos produtos penetram o imaginário popular de tal forma, que é como se existissem há séculos e fizessem parte da dieta dos nossos mais remotos antepassados.
Alguns, em particular, costumam participar de fatos históricos. Pelo menos numa das histórias que me chegaram aos ouvidos. Lendárias ou não, são saborosas.
Contam, por exemplo, aquela na qual o Leite Moça teria decidido a eleição de um presidente. Isso aconteceu logo depois do segundo mandato do Getúlio Vargas.
Os integrantes do Partido Social Democrata pareciam desejar ressuscitar a “política do café com leite”, entre Minas Gerais e São Paulo.
Ao se decidir sobre a escolha do candidato a presidente, a delegação paulista que se dirigira a Belo Horizonte, impôs o seu candidato ao partido.
Os ânimos iam exaltados e já se previa uma guerra nos bastidores, com consequências imprevisíveis.
Foi quando um dos representantes paulistas, ligado aos industriais, fez um sinal secreto aos seus assessores.
O auditório foi invadido por latas de Leite Moça, que foram distribuídas a todos os participantes do conclave, já abertas, com um furinho, prontas para serem consumidas.
Houve um grande murmúrio de aprovação no recinto e tudo mergulhou no mais profundo silêncio, segundos depois.
Ouvia-se apenas o incômodo barulho que os mais gulosos faziam ao sugar o leite sem os modos civilizados, muito apregoados na época.
Após deliciarem-se com o Leite Moça, o ânimo geral se acalmou e a discussão tomou novo rumo.
Um dos representantes da delegação mineira, matreiramente, solicitou ao seu colega paulista que lhes fornecesse uma caixa do leite fabricado pelo que denominou de “sua pujante indústria”.
Serviu-se, quase ao final, o mais saboroso café que já se havia tomado. Café com Leite Moça. Essa invenção mineira desnorteou os paulistas. Partiram para o consenso. Escolheram o Juscelino Kubitschek para candidato, como todos sabemos.
Contam que este, ao decorar o Palácio da Alvorada anos mais tarde, manteve durante todo o seu mandato, na espaçosa cozinha do palácio, um pôster com a menina do Leite Moça, em tamanho natural. Ao convidar os amigos mais íntimos a tomar ali um cafezinho, dizia que “aquela moça ali” o ajudara a se eleger presidente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ao relento

- Vó, é bom dormir ao relento?

- Onde você ouviu isso, menino?

-
No filme de bang bang, ontem à noite.

- Como foi a frase?

- “Não se preocupe, será apenas uma noite dormindo ao relento”.

- O personagem dormiu bem?


- Quando ele apareceu, novamente, já estava de pé dando água ao seu cavalo.

- Hoje você dormirá ao relento, no caminhão do seu pai. Aí você vai saber!


Meu pai chegou de Vazante, descarregou o minério e estacionou perto de casa. Corri, e antes que ele descesse, contei-lhe o que minha avó planejava: me deixar dormir ao relento. Perguntei-lhe:


- Dormir aqui dentro é bem seguro, não é pai?

- Aqui é, mas dormir ao relento não é dormir na cabine. É dormir lá em cima, na carroceria…

- Verdade?

- Tua avó não te disse?

- Não!

- Pois é lá em cima. Mas não se preocupe. Farei uma cama com o encerado.

- Que bom, pai!

- E a sua avó, vai te dar uma coberta?

- Vai. Um lençol e uma coberta.

- Sua mãe sabe disso?

- Ela pediu para eu não contar pra ninguém!

- Ah, então está bem...

Eu tinha uns sete anos. Morávamos em Paracatu, em Minas Gerais.

Minha avó também fazia alguns gostos meus. Mas do seu modo, sempre que eu pudesse aprender alguma coisa. Vivi, assim, algumas aventuras.

Naquela noite eu me assombraria com alguns barulhos, que me perturbou o sono, mas a noite de Lua Nova me presenteou com um céu repleto de estrelas. Pude, também, desvendar um mistério que me encantava a imaginação.  

A vizinha de minha avó, uma idosa enferma, lhe contava sempre a mesma história com algumas variações: o dinheiro que aparecia em sua casa, quando ela mais precisava. Eu, perto, ouvia suas conversas:

- Quando a fome ameaça as panelas do meu fogão, Cecília, Deus me envia os recursos!  

- Mas, Quitéria, não será alguém de carne e osso, que não deseja aparecer? 

- Cheguei a pensar nisso. Mas, como pode? Tenho sono de passarinho! Qualquer barulhinho me acorda. 

- E quanto este é este dinheiro, Quitéria?

- Depende da semana. Ou das minhas necessidades.

- Sua e da sua família, não é?

- Da família, dos amigos. Dia desses recebi a visita de minha comadre Tereza, a que mora em Guarda-Mor. Seu esposo faleceu, deixou treze filhos e ela viveu dias difíceis, pois caiu doente. Veio em busca de ajuda... Logo na minha casa, meu Deus. Eu, sem nada! 

- E o dinheiro apareceu?!

- Dois dias depois, ao acordar, lá estava, na janela da cozinha, um bolo de notas. Eu e Tereza choramos muito, agradecidas. O padre Jerônimo sabe muito bem desta história. Ele ajudou a fazer a compra da comadre e arrumou carona com o Zé de Abel, para ela voltar para casa.

Pois eu tive que aprender a guardar segredo... Naquela madrugada eu vi quem era o anjo do dinheiro. O doutor Chiquito, a quem eu conhecia muito bem, pois meu avô sempre me levava para consultar com ele, bastava a minha garganta inflamar.

Nem precisei vasculhar a memória para identificar o vínculo entre o médico e a sua mais conhecida paciente, a mulher que vivia a ressuscitar, inexplicavelmente - dona Quitéria. Duas ou três vezes ao ano o seu coração parava por poucos minutos e a conseguiam trazer de volta.

Ela pisava no reino dos mortos e de lá retornava trazendo notícias, que ela só confiava ao padre Jerônimo, que tinha por missão ambientar o recado de cada defunto em meio às paisagens do céu, do purgatório ou do inferno.

A única história com detalhes que me lembro era o do garimpeiro sovina, seu Amâncio, que havia deixado suas moedas de ouro escondidas na massa de barro do muro de sua extensa casa... Pois bastou ele morrer para os seus descendentes derrubarem o muro todo!

No dia em que dona Quitéria contou esta história para a minha avó eu dormi agarrado com minha mãe.

- Seu Amâncio vive em busca de suas moedas. Ele vai de casa em casa, atravessando paredes e muros, como um fantasma medonho, sombrio, sofredor. E repete sempre a mesma frase: “O ouro é meu! O ouro é meu!”...