quinta-feira, 4 de junho de 2009

Crônicas e ensaios IX


O mapa e o homem

"Quanto a mim:
Para mudar
Uma só velha mania
Quantos anos levei!"
                Trecho da poesia "A Vida e a Arte"

Surge de tempos em tempos novas teorias no campo da administração. A maioria prometendo soluções fáceis para velhos e difíceis problemas. Uma análise profunda, no entanto, nos levará a seguinte conclusão: a de que a aplicação de qualquer teoria e o seu conseqüente método tem como limite o próprio homem. O fator humano, a pessoa, é o ponto central do problema.

Como então aplicar as maravilhosas técnicas de administração do tempo, por exemplo, em pessoas cuja formação foi marcada pela indisciplina? Para que uma técnica ou um método qualquer seja aplicado com eficiência, seria necessário o pleno empenho da pessoa em reformular, em mudar velhos hábitos e costumes, o que implica, em última instância, numa nova concepção de vida. O que estimularia, no entanto, uma tal mudança? A perspectiva de melhores salários? A necessidade de manter-se no emprego? É óbvio que o homem se adapta sob pressão ou necessidade aos ambientes de trabalho mais hostis, principalmente sob a perspectiva de vir a perder o emprego. Não estamos tratando, porém, de casos extremos. Nós podemos afirmar, por outro lado, com convicção, que se não houver estímulos e motivações adequados e relevantes, não haverá mudança, transformação real, mas apenas adaptação forçada e provisória.

O ponto central de nossa tese é a que somente com a transformação do homem será possível mudar o mundo (a empresa, a escola, a família, etc). Aliás, existe uma história interessante sobre isto. Conheço-a em duas versões, mas em essência o que se conta é que um pai, extremamente ocupado com uma tarefa que levara para casa, não conseguia concentrar-se, pois a filha tagarelava ao seu lado. Para entretê-la, pegou um mapa mundi, recortou-o e entregou o 'quebra-cabeça' para que ela montasse. Qual não foi a sua surpresa, quando ela, cinco minutos depois retornou com o mapa todo montado. Intrigado, ele perguntou como ela conseguira tal proeza. A menina, muito tranqüila, respondeu que fora muito fácil, pois atrás do mapa havia a figura de um homem. Bastou recompor o homem e o mapa do mundo foi refeito.

Daí a importância da educação. Não a mera instrução, o simples treinamento voltado para o mercado de trabalho, que sabemos ser necessário. A educação integral é a que desejamos destacar. Aquela educação que preocupa-se em moldar um homem novo, mais solidário e responsável. Uma educação que preocupa-se com o raciocínio, o sentimento e o caráter. Enfim, teremos um imenso desafio no próximo milênio, por longos séculos, que é justamente a educação das massas. Se nada fizermos neste sentido, estaremos condenados a viver neste caos nosso de cada dia...

Seção Requentação (Porto Velho, 11 de novembro de 1998)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Crônicas e ensaios VIII

Calendário

"
...se o calendário atrasar / eu faço voltar o tempo outra vez / tudo outra vez a passar" Fagner

Como se sabe, a indústria farmacêutica promove um saudável assédio aos médicos, por meio dos seus representantes. É através dessas visitas periódicas que são apresentados os novos remédios ou reforçado a imagem dos velhos. As famosas amostras grátis de remédio surgem desse contato. 

Além das amostras eles também ganham presentes de toda natureza: de almofada para carimbo a CD, de livros a relógios. Inclusive calendários. Muito bem, o que o tal calendário continha de original era apenas frases. Uma por mês, acompanhada de um desenho que a interpretava. É disso que trataremos. Eis as frases:

Janeiro: Jamais prive uma pessoa de esperança. Pode ser que ela tenha só isso.

Fevereiro: Cante no chuveiro.

Março: Aceite sempre uma mão estendida.

Abril: Saiba perdoar a si e aos outros.

Maio: Respeite todas as coisas vivas.

Junho: Saiba guardar segredos.

Julho: Assista ao nascer do sol pelo menos uma vez por ano.

Agosto: Aprenda a tocar um instrumento musical.

Setembro: Elogie três pessoas por dia.

Outubro: Tenha um aperto de mão firme.

Novembro: Gaste menos do que ganha.

Dezembro: Não reze para pedir coisas. Peça sabedoria e coragem.

Pode parecer filosofia barata, mas não é. Algumas podem pertencer ao gênero "dicas, truques e quebra-galhos", o que não elimina o seu valor. 

"Tenha um aperto de mão firme", por exemplo, é de fundamental importância nos nossos relacionamentos. Dizem alguns que aperto de mão frouxo revela insegurança ou timidez. Ou ainda descaso. Não é preciso, porém, quebrar os ossos alheios. É preciso saber dosar a própria força, convenhamos. 

As frases, por outro lado, proporcionam temas para que se escreva um livro. No entanto, fiquemos apenas com o mês de novembro e a sua sábia advertência: "Gaste menos do que ganha." O autor das frases, deve ter adivinhado que mais um capítulo da crise financeira internacional e brasileira iria nos encontrar em novembro com os bolsos vazios. Que dezembro seja melhor. E que rezemos menos pelos presentes que desejaríamos ganhar e mais pela sabedoria e a coragem que precisamos conquistar para seguirmos serenos, a despeito de tudo.

Seção Requentação (Porto Velho, 6 de novembro de 1998)

PS.: o ingênuo assédio da indústria farmacêutica aos médicos, relatado por mim, há quase dez anos, já caiu por terra... O calendário e as frases continua inspirando.

domingo, 31 de maio de 2009

Crônicas e ensaios VII

Como a classe média trata os seus filhinhos

"Sob o ditames da moda, do sucesso, do fácil, vamos criando um verdadeiro exército de imbecis - ricos, mimados, cruéis..." Pedro Garcia de La Vega

Conversava há poucos dias com uma funcionária do Banco do Brasil. Economista, professora universitária e mãe. Desde os doze anos todos os seus filhos trabalham. Meio período, com critério, mas também com rigor. Trabalho que em nada atrapalhou os estudos deles. Pelo contrário. Bastar ver que estudam em boas universidades, cujo acesso nunca é facilitado.

A sua filha, elas nos contou, dá-lhe hoje os créditos de mãe no sentido maior da palavra. Por reconhecer que os rigores, o 'autoritarismo' e as 'chatices' dela, foram fundamentais para o seu desempenho escolar e para a sua tranqüila vida de estudante. Ela lava, passa, cozinha, estuda (é claro) e sobrevive sem sobressaltos com menos de quatro salários mínimos. A sua colega de apartamento recebe praticamente o dobro e vive emprestando dinheiro. A primeira teve uma mãe que a educou verdadeiramente. Sem cair na cilada do 'coitadinha da minha filha'. Ou do 'tudo o que eu não tive, vou dar a ela'. A outra teve uma mãe que a protegeu, não a preparou para os embates naturais e saudáveis da vida e hoje ela não sabe se conduzir. Talvez aprenda com a colega, se tiver bom senso. Talvez.

Os pais devem ocupar os seus filhos. Trabalho remunerado, voluntário, doméstico, simbólico, o que seja. Porém os pais e mães da nossa decadente classe média teimam em protegê-los, livrando-os do trabalho... E a proteção é tanta que se transforma qualquer adolescente em fase de crescimento em criança de berço. Daí, talvez, o apelido deles: filhinho de papai, da mamãe, mauricinho, patricinha, etc.

O filhinho, ao contrário dos pais, que lutaram, trabalharam, suaram e venceram, não pode trabalhar. Ou se ocupar com alguma coisa útil. Pode ficar traumatizado. Ou ainda atrapalhar os seus estudos (como se alguém conseguisse estudar todas as horas do dia). Nada mais falso. Nada menos saudável. E as conseqüências, senhores, é bem sabido. Uma legião de rebeldes sem causa, sem rumo, sem a mínima disciplina, respeito e noção do que é viver em sociedade.

Muitos argumentam: eles não trabalham porque não encontram emprego. Mas que emprego desejam para os seus filhos? Evidentemente nada que se assemelhe aos que eles tiveram. Eles puderam ser disciplinados, aprenderam a respeitar hierarquia, cumprir horário e outras coisas nem sempre agradáveis mas necessárias. E agora, é de se pasmar, negam tudo aos seus filhos. Eles estão sendo privados de tudo isso. Do que é fundamental na formação de uma criança, adolescente ou jovem.

O que esperar? Que o Exército discipline o seu filho? Antigamente, quando o adolescente estava beirando as raias do crime, existia essa última esperança. Ele iria servir a Pátria e no quartel recebia o que em casa não lhe deram. Noções básicas de educação... E agora, o que fazer?

As meninas também estão sob as asas da proteção dos pais da nossa decadente classe média. Elas já não aprendem mais a trabalhar nas lides domésticas. Não se aprende a cozinhar, arrumar casa, lavar e passar, pois isso hoje é coisa de 'empregada' ou 'secretária'... Motivo? Quase sempre o mesmo: as oportunidades que eu não tive ou tive com muito sacrifício, darei aos meus filhos. De 'mão beijada', sem lhes dar pistas do que sejam as palavras esforço, sacrifício, luta. Essas oportunidades, desse modo, excluem a educação mais básica, aquela forjada na convivência, no espaço simbólico chamado lar, onde se aprende as noções fundamentais de convívio humano. E onde, o mais importante, aprende-se regras de conduta. Estas regras são assimiladas através de tarefas, responsabilidades e isso exige participação, trabalho. Nem que seja o mínimo, quando não haja possibilidades maiores: pelo menos que se lave as roupas íntimas, guarde-se os objetos de uso pessoal e coisas do gênero.

Espera-se que não se poupe tantos os filhos. Se poupança (monetária) nunca rendeu muito e aliás existe mais para preservar valores do que para ampliá-los, o que dizer do fato de se buscar a todo custo poupar os filhos dos embates da vida?!... Eles vão estagnar. Sem riscos, sem dor, sem luta, não há crescimento... Não existe investimento melhor para os nossos filhos, do que lhe darmos trabalho. Acreditem.

Seção Requentação (Porto Velho, 6 de novembro de 1998)