domingo, 29 de março de 2015

O lado sombra

A professora do meu filho dizia que toda criança, mesmo as menores, era capaz de entender "muito além do que a gente pode imaginar".Que nós, os pais, déssemos apoio em casa, sem "quebrar a onda" delas. 

Era assim em sala de aula, naquela escola. Toda conversa, mesmo as mais atravessadas, seriam sempre aproveitadas...

"Então tá, né!".Ouvi esta frase irônica de alguns pais, na saída da reunião.

Meses depois me pus a apreciar o "método de livre associação" da professora, que começava a fazer efeito:

- Luz, cama, ação!!

- Epa! Não é câmera, Stênio?

- Não, a cama nesta frase foi ideia minha. A professora pediu que a gente inventasse uma frase. Podia ser parecida com outra. Inventei!

- Parece que estas três coisas não combinam...

- É do meu filme, mãe!

- Mas não era uma frase?

- Era, mas virou filme. Filme de ação.

- Ahn?! Com cama e tudo?

- Mãe, os verbos de ação que eu escolhi, na aula, foram: sonhar, dormir e imaginar.

- Mas desde quando dormir é verbo de ação?

- Claro que é! Foi a senhora mesmo quem disse isso.

- Eu? Quando?

- A senhora comentou que nem dormindo eu sossego!

- Era só um modo de dizer, uma expressão.

- Meus sonhos são de ação mesmo. Também de suspense, de aventura, às vezes de terror... Tem também um pouco de comédia.

- Então todo o enredo do seu filme acontece no mundo dos sonhos?

- Não, mãe, não é tão simples assim! A cama é apenas um portal.

- Você deita, apaga a luz, atravessa o portal e entra em ação?!

- Nada disso! Seria muito previsível. Na verdade, a cama é onde os personagens da mitologia grega desembarcarão para a aventura.

- É cada ideia!!

- Mãe, a senhora não está ajudando! Vou precisar de vocês. Tenho que conseguir uma cabeça de touro, com chifres bem grandes, para o meu filme. O primeiro personagem que aparecerá será o Minotauro. Tem que ser realista e gravado em casa. O pai...

- Seu pai?! Pode ir sonhando. Machista como ele é, não faria um papel desses de maneira alguma!

- Não?!

- Não!

- Mas o Minotauro...

- Tem chifres.

- E o que tem o chifre?

- É um símbolo que assombra muitos homens.

- Ah, mãe, você não quer dizer que o pai tem medo de ser traído, tem?

- Então você entende?

- Você nunca se apaixonaria por outro homem, mãe, eu sei!

- Nem pensar!! Um só basta, dá trabalho. E, além disso...

- Você gosta mesmo do meu pai, não é, mãe?! Ele não tem feito por onde merecer, mas você faz a sua parte. Eu sei!

- Hein?! Que história é essa, filho? Este assunto...

- Este assunto também me interessa! Vocês são meus pais, lembra? E eu posso ajudar, como tenho tentado. Ontem mesmo conversei com o pai...

- O quê?! Conversou o quê?!

- Sobre as três grandes paixões dos homens.

- Que conversa foi essa?

- Ouvi na escola... Os homens costumam gostar muito de três coisas: amigos, futebol e cerveja.

- Ahn?! Foi a sua professora quem disse isso?!

- Não, mãe, foi um homem, um escritor que visitou nossa turma. Acho que isso acabou saindo, meio sem querer...

- Ah, sim! O livro dele então era sobre outro assunto.

- Era sobre as nossas escolhas, sobre o destino. Acabamos falando de moda e das pessoas que seguem as ideias de outras pessoas sem perceber!

- Meu Deus, preciso voltar para a escola! Me conta mais...

- Ele disse que parte dos homens adora cumprir ordens. Eles não pensam, não tem autonomia... Tipo os soldados na guerra. Por isso, eles conseguem matar tantas pessoas. Mas depois piram o cabeção. E aí matam mais gente e se matam. Não nascemos para certas coisas terminadas em “ança”, mãe, o escritor disse!

- Que coisas são essas?

- Matança, lambança e vingança...

- Rimou, mas é esquisito... Sim, mas e a conversa com o seu pai, o que você disse?

- Eu falei que ele parecia o personagem de uma história que criamos em sala, ao vivo, na visita do autor do livro. Nós escolhemos três palavras no dicionário, ao acaso. E ele provou que nós éramos bons contadores de histórias.

- Me arrepio só de pensar nas palavras que saíram...

- Foi uma fácil, uma mais ou menos e uma difícil. Ovelha, propício e mequetrefe.

- E o seu pai?!

- Mãe, mequetrefe é o mesmo que enxerido, inútil, patife. E tem muita gente assim que comanda pessoas, que influencia, sabe?!

- Não sei de mais nada!! Eu já disse que vou voltar para a escola e juro que vou! Continua.

- Brincamos, no final, de trava-língua e de fazer rima. Alguém lembrou que mequetrefe rimava com chefe. Lembramos também de uma brincadeira que a professora tinha feito em sala: “Cuidado com as ordens do chefe!”.

- Esta professora...

- Ensina a gente a pensar, só isso, mãe!

- Continua que eu estou curiosa!!

- Mãe, o pai se deixa levar por pessoas do tipo “mequetrefe”, inclusive aquele que é o seu “chefe”, um cara totalmente sem noção! Qualquer criança com um pouco de juízo na cabeça sabe fazer escolhas mais sensatas...

- Escolhas mais sensatas! Meu filho, sua professora está roubando a sua infância. Você está se tornando adulto muito cedo, não acha?

- Não acho, não! E para a senhora ficar tranquila, a gente mais brinca em sala de aula, do que estuda, principalmente aquelas coisas chatas dos livros, sabe?

- Verdade?

- Juro por tudo o que é sagrado pra mim e pra você!

- Como assim?! O seu sagrado agora é diferente do meu?

 - Mãe, eu gosto de outras coisas também! Até do Hades eu sou fã. O inferno mitológico dos antigos era maneiro, mãe! Olha aqui a minha camiseta: Darth Wader. Todos nós temos um lado sombra... Ignorar isso pode barrar a luz que trazemos dentro de nós.

- Não vai dizer que a professora...

- Não foi ela! A escolha foi minha. Foi na Semana do Cinema. A senhora não lembra que foram seis dias, até no sábado? Eu escolhi Star Wars. Debatemos muito! Foi a psicóloga da escola que falou sobre nossa sombra. Ganhei até uma figurinha do ídolo dela, o Jung (escreve com jota, mas se pronuncia como i). J - u - n - g.

- Bem e o seu pai, o que disse?

- Vai mudar de emprego e de amigos.

- Eu bem que achei ele meio esquisito, falando umas coisas sem sentido...

- Ah, mãe, ganhei a aposta que fiz com ele. Ele não acertou nenhuma daquelas três palavras (amigo, futebol e cerveja). Eu sabia que o lado sombra dele ia ser mais forte, eu sabia!

- Filho!!

- Mãe, desculpe, mas tenho que colocar em prática o que estou aprendendo na escola! Não é assim que tem que ser?

- Que palavras você achou que ele iria dizer?

- Errei uma só. Ele se superou, mãe! Disse que o que mais importava era Deus, a esposa (“sua mãe”, ele falou!) e a família. Eu achava que ia ser Deus, a esposa e os filhos...

- Queria estar lá para ver a cara de espanto dele...

- De espanto ou de choro?

- Ele chorou?

- Homens não choram, mãe! São os ciscos...

- Sim, são os ciscos...

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