sexta-feira, 12 de junho de 2009

Crônicas e ensaios X

Cartola, um sonho


"E eu sei lá?! as rosas não falam..." Cartola

"Bate outra vez, com esperanças o meu coração / pois já vai terminando o verão, enfim..." Todos já ouviram alguma vez na vida esta canção. As rosas não falam, de Cartola, foi gravada por Bete Carvalho, Fagner, Gal Costa e outros intérpretes. Não estamos aqui, no entanto, para falar propriamente das rosas, mas de Cartola.

A vida e a obra dos grandes autores (escritores, compositores, etc) nem sempre se conjugam. Ora a vida suplanta a obra, ora a obra se destaca, apagando a vida. É raro haver uma perfeita sincronia e correspondência entre estes dois aspectos. Com o Cartola houve uma dessas raras conjunções.

Mas quem foi Cartola?, perguntaria alguém das novas gerações.

Angenor de Oliveira (1911-1980), nasceu no Rio de Janeiro e foi um dos fundadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. Sua vida foi marcada por muito sofrimento, motivado por doenças, ausência de reconhecimento à sua obra e problemas financeiros. De origem simples, trabalhou na construção civil e como usava um chapéu coco para proteger os cabelos do cimento que carregava na cabeça, ganhou o tal apelido.

Depois de fundar a Mangueira e compor sambas gravados pelos grandes intérpretes da época (Francisco Alves, Carmem Miranda e outros), aos 58 anos contraiu meningite. Sem outra alternativa, foi trabalhar como guarda e lavador de carros em um edifício em Ipanema. Sérgio Porto, cronista carioca da época, o encontrou tomando café num bar em uma madrugada, todo molhado. Estarrecido, prometeu e conseguiu ajudá-lo a sair daquela triste situação. O que comove, porém, é o depoimento dele, gravado em disco, acerca deste período de sua vida. Transparece aí toda a sua força e serenidade diante das intempéries da vida. O acontecimento é narrado sem qualquer mágoa. Com a palavra Aluízio Falcão, crítico e produtor musical: "Cartola não era uma pessoa queixosa, ressentida, como tantas que habitam o território da arte". Depois deste estágio como lavador de carros, voltou a compor e pode gravar o seu primeiro disco solo aos sessenta anos.

Nos anos setenta tornou-se proprietário de um restaurante no Rio, que evidentemente foi à falência, graças ao seu generoso coração e o seu pouco jeito com os negócios. Enquanto durou o negócio, o restaurante foi palco do reencontro dos brasileiros com o samba, que andava em baixa por aquela época.

Cartola deixou uma extensa obra, muito pouco conhecida, mas hoje felizmente revisitada por muitos intérpretes.

Alguém comentou um dia que Cartola não existiu, foi um sonho. Um sonho verde e rosa. Um sonho do qual não desejaríamos nunca mais acordar...

Seção Requentação (Porto Velho, 11 de novembro de 1998)

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