sexta-feira, 2 de julho de 2010

Quem resistir e ler, verá! E se deliciará com Monteiro Lobato...

Decidi arrancar e publicar tudo o que anda atravancando estantes, gavetas e arquivos - reais ou virtuais.

Esta reportagem-entrevista com e sobre o Monteiro Lobato estava guardada a tempos. Nem mesmo eu a havia lido. E agora, depois de atualizar-lhe a ortografia, a compartilho com os meus raros e ocasionais leitores (desculpe-me se há alguns mais fiéis e constantes!)

Pensei em publicá-la com alguns comentários elucidativos, mas desisti. O encanto da reportagem, o estilo detalhista dos bons jornalistas de antigamente e outras surpresas dispensam adendos de qualquer natureza.

Boa leitura!

A MORTE É VÍRGULA, PONTO E VÍRGULA OU PONTO FINAL?

Folha da Noite, São Paulo, 22 de abril de 1947.

Monteiro Lobato, que vai regressar ao nosso país, quer verificar essa "inquietação". Em entrevista exclusiva para "Folha da Noite" narra o grande escritor as verdadeiras razões de sua viagem à Argentina e os motivos que o trazem de volta ao Brasil, aonde deverá chegar dentro de poucos dias.

Correspondência especial para a "Folha da Noite"

BUENOS AIRES, abril, por via aérea - Monteiro Lobato voltará ao Brasil no fim deste mês. Desta vez vai mesmo. E vai para ficar.

O seu retorno, tantas vezes anunciado e tantas vezes desmentido, foi-nos comunicado com essas simples palavras:

— Estou de malas prontas para voltar a São Paulo. Vou ficar em hotel, já que não há casa...

Foi assim que Monteiro Lobato nos revelou uma notícia que todos os verdadeiros amigos e discípulos do grande escritor desejavam ouvir há tanto tempo. E concluiu, resmungando:

— Não vá publicar nada do que lhe disse. Isso aqui é uma informação para uso pessoal e não uma entrevista. Veja esses recortes: são de entrevistas a mim atribuídas. E olhe quanta besteira contém esse pequeno trecho, quanta besteira em tão poucas linhas!

Uma entrevista nada fácil

A verdade, entretanto, é que nossa entrevista saiu sem que nós ou Monteiro Lobato estivéssemos com esta intenção. Ao visitá-lo, não nos passava pela cabeça entrevistá-lo. Alem do mais, quase que não havia nenhuma originalidade em mais uma entrevista com Lobato.

Raro é o jornalista brasileiro que vem a Buenos Aires e não corre logo à casa de Lobato. Que belo assunto para jornal. O repórter nem tem que fazer força. Lobato — e como ele e sua família sabem receber bem os brasileiros que passam por aqui! — vai dizendo, com aquele seu jeitão de caipira paulista, frases que podem constituir cada qual uma manchete. Mas, quando a entrevista sai, lá vem o estrilo.

A culpa, porém, nem sempre é do repórter. Não é nada fácil registrar mentalmente o aluvião de coisas interessantes que o escritor vai dizendo. Alem do mais, aqueles dois olhos negros, escondidos debaixo de um par de imponentes sobrancelhas, não param de se agitar. O pobre do repórter nem sabe o que deve registrar primeiro — as palavras ou a malícia do olhar, as frases ou aquela gargalhada nervosa e indecifrável.

E enquanto essa pequena tragédia profissional ocorre, Lobato — sem se dar conta de que o repórter esfrega intimamente as mãos de contente — vai destilando a sua amargura, essa amargura que o torna um dos espíritos mais construtivos do Brasil.

Foi assim que nasceu esta entrevista. Lobato agitou no ar um dos últimos recortes que recebera de São Paulo, onde alguém colocara em sua boca que "o Brasil melhorará porque não estava mais dominado por políticos ossudos, bojudos e soturnos".

— Eu nunca diria esse amontoado de asneiras. Ora, ora, políticos ossudos e bojudos! Você é capaz de me explicar o que quer dizer isso? Naturalmente me referi a qualquer outra coisa e o repórter fez a confusão.

Sim, Lobato tinha razão. Mas — que diabo! — ele estava falando com um jornalista. E o instinto profissional se manifestaria... Assim, de mansinho, partiu a insinuação:

— O método americano de entrevista de jornal, é que é batata. O repórter escreve as perguntas, o entrevistado as devolve datilografadas e não há jeito da confusão se estabelecer.

— É isso mesmo, respondeu Lobato. O que nos falta é método, é sistema. É por falta dessas coisas que a gente passa tantas vezes por desonesto e burro.

Enquanto Lobato falava, rabiscávamos — como quem não quer nada — um questionário. E o escritor mais lido e difundido na America Latina, caiu na armadilha como um patinho.

Aliás, para aproveitar a deixa, esta não é a primeira demonstração de inocência de Lobato. Apesar de seu ar feroz e casmurrão, ele é um dos homens mais puros do Brasil. E daí tantas de suas dores de cabeças.

A gente está habituada a vê-lo revolver e espicaçar a vaidade nacional com uma crítica impiedosa e incorruptível, como raros são os intelectuais do Brasil com coragem de fazê-lo. Entretanto, por detrás da cortina de ferro de ceticismo e descrença de Lobato, encontra-se um homem que ama o Brasil e que para torná-lo melhor vai dos livros ao fundo da terra, cria o Jeca Tatu, organiza editoras e funda companhias de petróleo e ferro, para ver se a coisa toma melhor jeito.

Aqui mesmo, em Buenos Aires o dedo de Lobato se acha por trás de tudo que signifique melhorar o nome e a posição do Brasil diante do povo argentino.

Há uma exposição de livros brasileiros. Oficialmente, é a nossa embaixada a sua organizadora. E não há dúvida que o jovem e eficiente secretário, Murilo Pessoa, dedicou-se a ela com o melhor dos seus esforços. Mas, é ele mesmo quem nos confessa:

— Monteiro Lobato foi o primeiro e o que mais nos animou e auxiliou na realização desse empreendimento.

E, se um dia a correspondência de Lobato for publicada — aliás, por que é que ninguém não se lembrou ainda de editá-la? — a gente descobrirá a preocupação de Lobato, por um Brasil melhor através dos inúmeros exemplos, sugestões, planos, críticas, conselhos, que ele envia incansavelmente daqui para os seus amigos e companheiros do Brasil.

Mas, isso já é assunto para outra conversa. Aqui, o que nos interessa é a entrevista, a primeira que Lobato afirma ser plenamente autorizada para os jornais do Brasil.

E, lá vai ela, tal e qual Lobato a redigiu, respondendo ao nosso questionário:

Em verdade, por que saiu do Brasil?

Monteiro Lobato — Para visitar na Argentina os trinta filhos que lá tenho sob forma de edições de livros.

E agora, qual a verdadeira razão de sua volta ao Brasil?

Monteiro Lobato — Nostalgia da língua. Descobri que Pátria é pura e simplesmente a língua nativa, na qual, desde o "papá-mamãe" vivemos organicamente como o bicho dentro da goiaba. Sinto-me bicho fora da goiaba, e quero a goiaba.

Comparativamente, quais as diferenças fundamentais de vida no Brasil e na Argentina?

Monteiro Lobato — As mesmas que há entre um automóvel que já partiu e um automóvel cujos passageiros ainda discutem com o chofer sobre o caminho a tomar.

Olhando de longe, seus pontos de vista sobre o futuro do Brasil sofreram qualquer alteração?

Monteiro Lobato — Nenhuma. Perto ou longe o nevoeiro é o mesmo.

Acha que a Argentina de hoje oferece alguns exemplos que o Brasil poderia aceitar e aplicar para o seu próprio desenvolvimento?

Monteiro Lobato — Acho que a abundância de água nas torneiras argentinas é um exemplo digníssimo de ser imitado pelas torneiras cariocas.

Voltando ao Brasil pretende divulgar o que viu na Argentina?

Monteiro Lobato — Divulgar a existência de bifes para o faminto e água para o sedento me parece obra de uma crueldade.

Finalmente, retornando ao Brasil, que pretende fazer?

Monteiro Lobato — Que pretendo fazer? Rebolar-me dentro da goiaba, contemplar o umbigo e preparar-me num convento para a viagem final. O meu cavalo está cansado, querendo cova — e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar pessoalmente se a morte é vírgula, ponto e vírgula ou ponto final.

Um comentário:

Otelice disse...

Este é o nosso Monteiro Lobato.
Quem sou eu para não aplaudi-lo?