quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Ao relento

- Vó, é bom dormir ao relento?

- Onde você ouviu isso, menino?

-
No filme de bang bang, ontem à noite.

- Como foi a frase?

- “Não se preocupe, será apenas uma noite dormindo ao relento”.

- O personagem dormiu bem?


- Quando ele apareceu, novamente, já estava de pé dando água ao seu cavalo.

- Hoje você dormirá ao relento, no caminhão do seu pai. Aí você vai saber!


Meu pai chegou de Vazante, descarregou o minério e estacionou perto de casa. Corri, e antes que ele descesse, contei-lhe o que minha avó planejava: me deixar dormir ao relento. Perguntei-lhe:


- Dormir aqui dentro é bem seguro, não é pai?

- Aqui é, mas dormir ao relento não é dormir na cabine. É dormir lá em cima, na carroceria…

- Verdade?

- Tua avó não te disse?

- Não!

- Pois é lá em cima. Mas não se preocupe. Farei uma cama com o encerado.

- Que bom, pai!

- E a sua avó, vai te dar uma coberta?

- Vai. Um lençol e uma coberta.

- Sua mãe sabe disso?

- Ela pediu para eu não contar pra ninguém!

- Ah, então está bem...

Eu tinha uns sete anos. Morávamos em Paracatu, em Minas Gerais.

Minha avó também fazia alguns gostos meus. Mas do seu modo, sempre que eu pudesse aprender alguma coisa. Vivi, assim, algumas aventuras.

Naquela noite eu me assombraria com alguns barulhos, que me perturbou o sono, mas a noite de Lua Nova me presenteou com um céu repleto de estrelas. Pude, também, desvendar um mistério que me encantava a imaginação.  

A vizinha de minha avó, uma idosa enferma, lhe contava sempre a mesma história com algumas variações: o dinheiro que aparecia em sua casa, quando ela mais precisava. Eu, perto, ouvia suas conversas:

- Quando a fome ameaça as panelas do meu fogão, Cecília, Deus me envia os recursos!  

- Mas, Quitéria, não será alguém de carne e osso, que não deseja aparecer? 

- Cheguei a pensar nisso. Mas, como pode? Tenho sono de passarinho! Qualquer barulhinho me acorda. 

- E quanto este é este dinheiro, Quitéria?

- Depende da semana. Ou das minhas necessidades.

- Sua e da sua família, não é?

- Da família, dos amigos. Dia desses recebi a visita de minha comadre Tereza, a que mora em Guarda-Mor. Seu esposo faleceu, deixou treze filhos e ela viveu dias difíceis, pois caiu doente. Veio em busca de ajuda... Logo na minha casa, meu Deus. Eu, sem nada! 

- E o dinheiro apareceu?!

- Dois dias depois, ao acordar, lá estava, na janela da cozinha, um bolo de notas. Eu e Tereza choramos muito, agradecidas. O padre Jerônimo sabe muito bem desta história. Ele ajudou a fazer a compra da comadre e arrumou carona com o Zé de Abel, para ela voltar para casa.

Pois eu tive que aprender a guardar segredo... Naquela madrugada eu vi quem era o anjo do dinheiro. O doutor Chiquito, a quem eu conhecia muito bem, pois meu avô sempre me levava para consultar com ele, bastava a minha garganta inflamar.

Nem precisei vasculhar a memória para identificar o vínculo entre o médico e a sua mais conhecida paciente, a mulher que vivia a ressuscitar, inexplicavelmente - dona Quitéria. Duas ou três vezes ao ano o seu coração parava por poucos minutos e a conseguiam trazer de volta.

Ela pisava no reino dos mortos e de lá retornava trazendo notícias, que ela só confiava ao padre Jerônimo, que tinha por missão ambientar o recado de cada defunto em meio às paisagens do céu, do purgatório ou do inferno.

A única história com detalhes que me lembro era o do garimpeiro sovina, seu Amâncio, que havia deixado suas moedas de ouro escondidas na massa de barro do muro de sua extensa casa... Pois bastou ele morrer para os seus descendentes derrubarem o muro todo!

No dia em que dona Quitéria contou esta história para a minha avó eu dormi agarrado com minha mãe.

- Seu Amâncio vive em busca de suas moedas. Ele vai de casa em casa, atravessando paredes e muros, como um fantasma medonho, sombrio, sofredor. E repete sempre a mesma frase: “O ouro é meu! O ouro é meu!”...