quinta-feira, 30 de junho de 2011

Histórias inacabadas (v)

Hedzam

capítulo 1

Nasceu em Paris, em 1889, em meio a um rigoroso inverno, o primeiro filho do casal Joachim e Érika, judeus franco-alemães.
Deram-lhe ao menino o nome de Hedzam, em homenagem ao bisavô materno e seu tio Jeremiah, irmão de seu pai, dado a sondar o futuro, vaticinou: “este menino nasceu para percorrer todos os quadrantes do planeta”.
Seu pai era joalheiro, como seu avô e nasceu em terras alemãs, na capital do antigo reino da Prússia - Berlim. A mãe, também descendentes dos hebreus, veio ao mundo numa das belas cidades européias à sua época - Viena, na Áustria.
Joachim era um ourives que sabia dar conta de seu ofício, mas sem brilho, limitado. Em contrapartida, Érika era dotada de mãos que desconhecia limites e, portanto, ninguém conseguia descrever, sem perplexidade, suas múltiplas competências artísticas.
Nas cartas que enviava ao seu irmão gêmeo, que ficara na Prússia, Joachim costumava comentar sobre as artes e engenhos da esposa:

Hans, tenho me perdido em indagações sem fim acerca dos mistérios que permanentemente me assombram: Érika e suas mãos que desafiam qualquer explicação. De onde lhe vem a habilidade ímpar que lhe permite moldar o barro, recortar o papel, esculpir a massa do trigo? Vivo escondendo a autoria dos seus pequenos inventos, para não despertar a inveja alheia. Imagine você que um dia desses...

Ela, na sua simplicidade, se limitava a comentar:
- Que mal há em deixar que minhas mãos traduzam o que imagino, penso e sinto?
Hedzam cresceu assim, neste pequeno grande mundo que era a sua casa, em meio às esculturas em miniatura da mãe e os mapas e globos tão ao gosto do pai, que sonhava viajar, indicando amplidões a se conquistar, sem contar o telescópio, instalado no sótão, que possibilitava passeios pela vastidão dos céus...

capítulo 2

Quem mais influenciaria Hedzam ao longo de sua jornada? 
Penso ser Érika, sua mãe. Outros, que estudarão, um dia, seus traços de personalidade poderão, ainda, detectar a presença firme do seu pai, do seu tio Hans e do seu avô materno. Como se vê, os homens poderiam ter conduzido seus passos rumo à aventura.
Mas, na verdade, foi a mãe de Érika, sua avó materna, quem lhe transferiu, pelos laços da afinidade, a mala e a bússola, a tenda e as panelas... Sofia era uma cigana que nascera na Bulgária, criara-se na Hungria até a adolescência e depois de decidir “tomar rumo próprio” casou-se com seu avô Dimitrius, um judeu grego, em algum ponto do rio Danúbio, possivelmente em uma pacata cidadezinha da Dalmácia, a terra dos dóceis cães alvinegros.
Hedzam, desde cedo, conviveria com estes seus avós maternos, em Viena. Passara lá boas temporadas de férias escolares, quando já se encerrava o século dezenove e o vinte se anunciava com suas promessas de progresso e bem-estar para todos...
Seus avós paternos, nascidos na Alemanha, moravam em Leipzig e se diziam herdeiros diretos da arte musical de Bach. Eram construtores de órgãos e músicos amadores. Sua avó Marlene e seu faro infalível para negócios e seu avô Jacob, homem das mãos firmes e ouvidos afinados, costuma visitá-los em Paris, quase sempre no outono, marcando Hedzam o bastante, contagiando-o com habilidades e gostos que ele iria, ao longo da vida, tomar como seus.
Mas foi Érika quem lhe apresentou, nos cenários que montava na sala de jantar, todos os continentes, seus povos, fauna e flora. Cenários que lhe consumiam semanas de trabalho meticuloso e exaustivo. Como aquele que incluía a erupção de um vulcão, no sul da Europa, próximo de Nápoles...
Já estava a me esquecer do seu tio Oto, o filho mais velho de Jacob, que lutara na guerra franco-prussiana, tendo ele próprio nascido no palco deste conflito, em algum ponto entre a Polônia e a Áustria, no tempo em que as fronteiras destes países se moviam para acomodar o difícil parto da nação alemã. Com este tio, que se tornara voluntário da Cruz Vermelha por décadas, escoteiro e adepto do vegetarianismo, tivera lições de como lidar pacificamente com os conflitos armados.

2 comentários:

Lucas França de Souza disse...

Dessas eu quero mais!
Como das antigas pai, contada por vc.

Abel Sidney disse...

Preciso continuar, filho, a escrita.

Narrar ao vivo, como fiz naquelas duas temporadas do Hedzam, era mais fácil. Transpor para o papel e suas exigências é grande desafio!

Valeu!!