sábado, 2 de julho de 2011

surto poético intermitente (ix)

Espelho

Se o outro é meu espelho e constrangido me sinto
por ele revelar tão diretamente minhas torpezas
não há de ser certamente contra ele - a imagem
a quem devo combater, inutilmente

Doí-me, ó vaidade das vaidades, cá no umbigo!,
por isso os tantos tremores e calafrios a me percorrer
pois é lá nas entranhas, bem mais fundo
que sinto tudo me revolver

Devo contar tudo, cena a cena, multifocalmente:

...eu era um simples observador da vida
levando uma vida calma, vivendo tranquilamente
até que me deparo com uma imagem transversa,
ou atravessada, às avessas, a me refletir:

Ele era tudo o que eu desejava ser, é verdade...
do que me corroía como medonho ócio
ele fazia, para os outros, prazer e negócio

Parecia que ria de mim, o desalmado,
pois tudo em sua vida se encaixava:
a irritante disciplina do seu fazer constante
a invejada e boa alegria que irradiava
os gestos espontâneos, amigos, que transcendia...

Descobri-me, então, nesse jogo de espelhos
em que a imagem dele, invertida, me parecia convite
desafio a me torturar, por me mostrar tal como eu era:
escravo de tantos vacilos, vivendo teimosamente
desnecessárias agruras e descartáveis prazeres

- Um dia a gente desperta! – eis o que dele ouvi
não com referência a mim, pois que era sábio
e ainda a afagar meu ego, falava das minhas virtudes
como quem lança, discreto, semente boa e resistente
em meio aos meus espinhos naquela difícil estação
quando de Deus nem mesmo eu era temente.

Mas o tempo ecoa, como onda que prossegue
vale adentro, montanha acima, sem cessar
e escoando as horas, eis que do solo da alma
como a brotar de um poço profundo
começa a minar a água viva que então pressinto
já existir em mim, esperando caminho certo
para transitar e se espraiar, em torno e além...

Hoje desse espelho ainda guardo fragmentos
imagens que permanecem vivas, aos recortes
e sinto que por vezes me confundo com o que
vejo refletido, em duplicata.

Um comentário:

Lucas França de Souza disse...

De tanto que olhou
Louco ficou dando
Aquilo ao real o ireal
da força de transformar
aquilo que não tem força
Para romper o que
viu
viu
viu
viu
Aquele dia no espelho